para o dr. manuel sá marques, com o meu abraço cordial de amizade fraterna
Estamos nas vésperas das eleições locais.
Se vivêssemos sob um verdadeiro regime monárquico-liberal, tão conservador como progressista, se a Monarquia Liberal entre nós fosse, como devia ser, uma transição contínua e segura do absolutismo para a República, ninguém hesitava em ir à urna. Todos caminharíamos juntos dentro da lei.
Eleger é a obrigação que normalmente se impõe a todo o cidadão livre. Enquanto se não puder fazer o Governo directo do povo pelo povo, como até na sua confederação já vai fazendo a Suíça pelo direito de iniciativa e de referendum, a eleição é a única origem legítima da autoridade. E, assim como o Governo do Estado, só representando geuinamente a opinião pública, conquista a confiança e o respeito de nacionais e estranhos, assim também o governo local necessita para ter força, perante os seus governados e perante o Governo central, de se basear no voto popular.
Eleições e leitos para o Governo local preparam e habilitam mesmo eleições e eleitos para o Governo central. Façamos a República local, que assim iremos fazendo a nacional. E nas localidades onde vencermos a eleição ou onde obtivermos maioria, aí teremos já oficialmente proclamada a República. Os grandes Estados Unidos da Austrália dão-se mesmo por lei esse nome dentro da tradicionalista mas liberal Monarquia inglesa.
Mas, se o regime governativo se torna ditatorial, é ele mesmo que, suprimindo a eleição livre, precipita a revolução.
Quando vim para o Partido Republicano, ainda a revolta contra a ditadura do engrandecimento do poder real, de [18]94 a [18]97, sobreexcitava os ânimos e, por isso, persistia dele uma forte corrente anti-eleitoral. E agora, depois da última ditadura do engrandecimento do poder real, de 1906 a 1908, alguns correligionários tomam os trabalhos eleitorais como um arrefecimento condenável, quase diríamos uma capitulação.
Não há tal.
É certo que, em toda a parte onde a massa republicana, não tendo alcançado ainda o predomínio, a força incontrastável de que já dispõe sobretudo em Lisboa e Porto, não desarma as cabalas reaccionárias, a eleição é desde o recenseamento até ao escrutínio final uma fraude. A própria lei eleitoral, que viola o direito ou antes a obrigatoriedade do sufrágio universal, o é. E, mesmo que o Partido Republicano vença a eleição, como vai sucedendo, enquanto ele não obtiver a maioria no Parlamento, a centralização de todas as corporações no Estado e do Estado no seu Chefe, oprime, cerceia e chega muita vez a anular toda a acção legisladora e administrativa dos eleitos do povo. Não há dúvida!
Mas a prova da virtude da eleição é que, nem assim, os governos reaccionários vivem tranquilos com o parlamento e as corporações locais de sua lavra. Eles bem os afeiçoam à própria imagem; apesar, porém, da deturpação da sua origem, o seu título electivo introduz-lhes um tal fermente de revolta, que os torna incompatíveis com eles e eles não têm remédio senão dissolvê-los. É a história do último reinado em Portugal.
E tanto a eleição, ainda sob as maiores pressões, é suspeita aos monárquicos, que adiam-na, sempre que podem. Fogem dela como o diabo da cruz. Tivemos agora um exemplo frisantíssimo disso. Sabem-no!
O Governo neo-liberal, presidido por João Franco, tinha adiado indefinidamente as eleições locais, e na época em que as localidades deviam pelo seu voto renovar as suas corporações dirigentes, substituiu-as por comissões administrativas de nomeação régia. Era a ditadura em toda a sua insolência! E que fazem em seguida os partidos liberais históricos? Restabelecem as antigas corporações eleitas, que eram em geral da sua feição política, e não apenas interinamente, até haver outras novamente eleitas que lhes sucedessem de direito, mas indefinidamente, porque deixam ao mesmo tempo de pé o adiamento sine die das eleições. Isto é, à ditadura franquista da nomeação das comissões administrativas segue-se a ditadura rotativa da prorrogação do poder às velhas corporações eleitas, transformadas desta arte em outras tentas meras comissões administrativas também. Ficou, portanto, tudo na mesma, mudado apenas o pessoal do Governo local do franquista para rotativo, e nem isso sequer realmente, porque as clientelas não têm dono certo, pertencem ao poder, e muitos rotativos se haviam já, por esse país fora, feito franquistas, como ultimamente vários franquistas se têm tornado rotativos. E ainda por fim os dois partidos históricos monárquico-liberais, assestando as baterias da funambulesca escolástica com que quase por toda a parte encobrem a sua falência intelectual e moral, inventaram para prolongar essa ditadura uma opinião jurídica, que é perfeitamente típica. Tendo submetido o decreto ditatorial do adiamento das eleições locais ao veredictum do Parlamento, deixaram-no lá pendente, e, uma vez encerrado o Parlamento, declaravam-se, em atenção a ele, coactos e impossibilitados de proceder às eleições locais, como ordena a lei. É até onde se pode levar a mistificação! Para que é que a estes pseudo-liberais servem as prerrogativas da representação nacional? Para cobrir à ditadura, que é a sua violação flagrante. Os escrúpulos da legalidade são para manter a ilegalidade.
Ainda bem que o Sr. Ferreira do Amaral não adoptou semelhante hermenêutica. E mão teve para isso de formar qualquer pacto com republicanos, bastou-lhe formá-lo com a sua consciência. Pena foi que não derrogasse logo de princípio toda a obra ditatorial que encontrou, e, que por o ser, toda devia ser logo declarada irrita e nula. Havia já direitos adquiridos? Não há nenhum senão pelo império da lei, dissessem sem embargo o contrário alguns juízes a quem infelizmente está confiada a sua guarda. Era mesmo o justo castigo infligido a quantos se haviam servilmente aproveitado da ditadura, tornando-se seus cúmplices. E ficava de escarmento e lição para futuro.
Mas o procedimento dos franquistas e rotativos contra a eleição denuncia claramente o medo que têm dela!
E a prova também da virtude eleitoral está em que, onde há um eleitorado valoroso e onde ele triunfa nas suas lutas, parcialmente que seja, em minoria, já o regime tem forçosamente de reprimir a arbitrariedade dos seus desmandos ditatoriais. A morte do franquismo começou no dia em que ele expulsava do Parlamento dois Deputados republicanos. Que é que sustenta o actual Parlamento contra as ameaças rotativas e o defende das suas investidas? É, mais que tudo, a presença lá dentro dos representantes legítimos da Nação, dos nossos representantes populares, embora só sete. E porque é que o Presidente do Conselho, com o seu são naturalismo, venceu agora a escolástica jurídica dos rotativos? Porque há hoje um eleitorado, principalmente em Lisboa, consciente dos seus direitos, que, custe o que custar, os quer fazer valer.
A força que neste momento o Presidente do Conselho possui incontestavelmente sobre todos os outros monárquicos, que mais dependem dele do que ele deles, o seu prestígio político provem-lhe da força que lhe tem dado o seu maior respeito pelas liberdades parlamentares, pelas liberdades locais e pelas liberdades de imprensa e de reunião, o que vale o mesmo que dizer pelo princípio electivo e pelo eleitorado. Pode viver com uma oposição parlamentar republicana, não receia viver com vereações republicanas, e não teme mesmo pôr-se em contacto com o povo, senão em comícios republicanos, em reuniões onde os republicanos se acham em grande maioria. A força que isto lhe dá é tamanha, que quebrou em parte as desconfianças de militarismo com que foi recebido à entrada para o Governo; e tudo, o artigo 5.º ao adiantamentos, o incremento clerical, até as tremendas chacinas de 5 de Abril, tudo por isso a opinião atribui muito menos a ele do que à reacção que o cerca e ilaqueia.
Em minoria que estejamos no poder, fiscalizamo-lo; e assim se começa a tomar conta dele. E, ainda mesmo que percamos uma e outra eleição, não há nunca esforço perdido. Quando um corpo cai sobre outro, pode não o despedaçar, mas aquece. Também em todas estas lutas cívicas aquecemos e vamos mais e mais excitando em nós o espírito revolucionário.
Sim! Todos os republicanos portugueses somos revolucionários, não o podemos deixar de ser, somo-lo por necessidade.
A revolução é o conflito fatal entre um regime que se torna cada vez mais reaccionário e uma sociedade que se torna cada vez mais avançada. Não podendo operar-se o progresso da Nação pelo progresso das instituições, opera-se em luta contra eles; e, não podendo, portanto, chegar-se à República pela evolução do poder, tem de chegar-se lá pela revolução popular. É inevitável. E é o que tem de acontecer entre nós, porque nos últimos anos a nação portuguesa incessantemente progrediu e o regime incessantemente retrogradou.
Mas não será possível ainda renovarem-se liberalmente os velhos partidos monárquicos? Respondem por nós que não as moções com que nas assembleias rotativas foram há pouco abafadas pelos chefes as vozes dos partidários independentes; e isto no transe em que essa afirmação de independência era o único sustentáculo da vida desses partidos contra a invasão franquista. E a resposta é peremptória. Não! Rotativismo quer dizer reacção política, como franquismo quer dizer reacção clerical. E com homens ou em volta de homens saídos desses partidos não serão viáveis novos partidos liberais? A experiência com João Franco, que era um temperamento e um carácter despótico, falhou; mas vingará com Ferreira do Amaral, que é, pelo contrário, de temperamento e carácter liberal? O Sr. Ferreira do Amaral, quem é, pelo contrário, de temperamento e carácter liberal? O Sr. Ferreira do Amaral já está no poder há nove meses, e que é do seu partido? Dentro da Monarquia é possível organizarem-se novos partidos reaccionários, como se organizou o franquista, como se vai organizando o nacionalista; mas um partido liberal, não! Aí têm a tentativa do grupo alpoinista! São longo os próprios monárquicos que o não deixam viver.
O aparecimento ou desaparecimento dum homem, Chefe do Estado ou Ministro, não altera nunca profundamente o curso dos acontecimentos ao ponto de, com esse homem, desaparecer um regime ou aparecer outro.
Morto o Rei e exilado o seu Primeiro-Ministro, que mudou? Dum lado prossegue o movimento republicano da sociedade portuguesa, do outro o movimento absolutista do regime, e as duas correntes seguem logicamente o seu curso, caminhando uma contra a outra. Que conseguiu a opinião liberal? Sempre conseguiu manter aberto o Parlamento com os Deputados republicanos; conseguiu nele a votação do orçamento e a discussão dos adiantamentos ilegais; e conseguiu dele um subsídio para os monumentos a [Marquês de]Pombal e a [Joaquim Augusto]Aguiar. Foi muito pouco, mas foi já alguma coisa. E a reacção? Ai! A corrente do engrandecimento do poder real, se não engrossou, persiste, ainda não foi sustada. O gabinete, com o Sr. Ferreira do Amaral na presidência, é não de restauração liberal mas de concentração monárquica, de modo que a obra do engrandecimento do poder real foi pela velocidade adquirida ainda além do que era com o Sr. João Franco, porque então ele só se atreveu a querer compor o ministério do Rei com progressistas, e nem com esse pode inteiramente, agora são progressistas e regeneradores todos juntos que voluntariamente o constituem. E, para maior ser a semelhança, é ainda o partido progressista, talvez o mais enfraquecido dos dois pelas suas apostasias, que principalmente lhe dispensa a sua cooperação. Assim se vão dissolvendo irremissivelmente os partidos históricos, convertidos em desdobramentos do poder, em clientelas, e o absolutismo do chefe do estado substitui-se ao dos chefes dos partidos. Nada mais lógico: é a história que se repete.
Quem pode ser liberal a dentro da Monarquia? Uivam-lhe logo em torno os mais cruéis doestos. Vejam como os seus paladinos tratam o Sr. [Ferreira do]Amaral! Quando o não chamam demente, acusam-no de traidor à Monarquia, chamando-o sarcasticamente o delegado do Partido Republicano junto do trono. E assim são eles próprios, os monárquicos, que fazem com que liberal seja sinónimo de republicano e por conseguinte com que só um Governo republicano possa hoje em Portugal ser um Governo liberal.
Não! Já não é lícito confiar na regeneração do regime. E ninguém imagina encontrar no povo português a quantidade de boa fé simples, ingénua, de que falava Oliveira Martins. Os desenganos dolorosos, tão repetidos, extinguiram-lha. O único recurso de salvação nacional é, não há outro, a revolução.
Mas revolução não quer dizer subversão geral. Será, pelo contrário, apenas o abalo momentâneo indispensável para arrancar a nação às causas de desordem que, dia a dia, a minam e subvertem, e restabelecer nela para sempre a ordem e a paz, harmonizando as instituições com a sociedade.
Não somos revolucionários por intemperança, como se o nosso partido fosse constituído por uma boémia juvenil, espécie demagógica de marialvas sempre propensa a distúrbios, fazendo da revolução um sport, ou só por bandos de revoltados da miséria, sempre em crispação de cólera, fazendo da revolução uma arma odienta de represálias sociais. Os novos estão certamente connosco, e nós estamos sempre de coração com todos os desgraçados, mas para os conduzirmos e disciplinarmos amoravelmente, não para sermos por eles arrastados nos desvarios das suas paixões. E, para os conduzirmos não precisamos de romantizar a sua exaltação, pondo-a em drama de capa e espada, não preconizando senão a conspiração misteriosa no ermo, nas trevas, com pistolas e espingardas escondidas. A conspiração que não é senão a propaganda armada feita clandestinamente, é decerto legítima, porém só para as justas reivindicações vitais que o despotismo violento do poder não permite fazer numa propaganda pacífica, à luz do dia. Uma não exclui a outra. E a propaganda franca de princípios é que é normalmente a nossa, porque nunca vamos até á violência senão para respondermos à violência. Há dentro do Partido Republicano profissionais, artistas da revolução, que acreditam que a revolução é como certos remédios que os médicos recomendam que se agitem antes de se tomar? O partido não os acompanha. Ele já não está na idade de confundir revolução com agitação teatral. Todos nós, republicanos, devemos dar a vida para defendermos a nossa causa, quando os nossos adversários, transformados em nossos inimigos, nos combaterem com as armas na mão; mas, assim como condenamos o duelo entre os indivíduos para julgamento de agravos pessoais, também por nossa vontade não levamos medievalmente o nosso ponto de honra político até lhe confiarmos o dos nossos pleitos partidários. É ao júri de honra, à sentença da opinião pública, que, por nossa parte, sempre queremos submeter.
Tão pouco somos uns fanáticos da revolução, que a adoremos em êxtase nirvânico, esperando que ela, por mercê especial à nossa invocação, desça um dia milagrosamente do céu até nós, sem nada fazermos por ela, como um beato que passe a vida inteira a rezar ao seu deus, deixando ocorrer à revelia toda a demanda dos seus mais sagrados direitos. Esses revolucionários parecem-se muito com as donas de casa que, a todo o momento, ameaçam as criadas com a expulsão: e elas vão ficando e fazendo quanto querem. Se os há entre nós, não são a massa do partido, cimentada pelo povo, que o trabalho educa no esforço paciente, serão apenas alguns intelectuais, a quem a família pôs para sua sustentação a mesa em casa, a quem a sociedade para a sua instrução pôs a mesa espiritual nas escolas, e que, saídos das aulas superiores, sem nunca serviram a ninguém, querem a toda a pressa que lhes ponham também para ali logo sobre a mesa o Governo do País. E, se lho não põem, amuam, como uns mimalhos. Raros deles, porém, têm a força do ânimo bastante para se conservar numa inacção ascética, à espera da revolução; a maior parte rendem-se logo de corpo e alma à reacção, que lhes acene com o poder. Raros, portanto, desses beatos revolucionários haverá dentro do Partido Republicano.
E muito menos ainda somos revolucionários como certos patrioteiros monárquicos, que enchem a boca com a autonomia e integridade da Nação, mas recusam-se ao serviço militar obrigatório e dão homens por si, substitutos para a defender. Nós não declinamos a defesa do nosso ideal no exército, que não desejamos que seja nem do Partido Republicano, nem do partido do Rei, mas da lei. Só num caso compreendemos e justificamos a insurreição militar, então mesmo julgamo-la até obrigatório, é quando o regime queria fazê-lo sem partidário servil, seu escravo. Ah! Então, se é legítima a violência contra a violência, quanto mais não o é, quando o poder intenta fazer do cidadão, por ser militar, pior do que a vítima, o algoz dos seus direitos!
A revolução redentora há-de estalar subitaneamente um dia, mas há-de ser preparada perseverantemente, laboriosamente, todos os dias, a cada minuto. O poder não evoluciona liberalmente para a República – não contemos com isso! – mas evolucionemos nós sem tréguas para ela pelo incessante exercício e progressivo desenvolvimento das nossas virtudes cívicas. Não há somente a evolução dos dirigentes, do regime, há também a evolução dos dirigidos, do povo, da consciência pública. Aquela evita a revolução, esta prepara-a para quando ela se torne necessária. Que é um soldado da República? É um cidadão acabado, perfeito, que, sem desumanidade para com ninguém, a não ser para consigo mesmo no ardor da refrega, todos os seus bens, até a própria vida, é capaz de dar heroicamente pela liberdade.
Esta capacidade de abnegação, de sacrifício pessoal, é que é necessário acender nas almas; e ninguém a adquire no isolamento, só na vida associativa se acendra e tempera. Por isso a segurança da nossa vitória final está fundamentalmente, está radicalmente na solidariedade cada vês mais perfeita da nossa organização partidária. Cada vez somos mais numerosos e mais unidos.
Porque a nossa união não é mais incompatível com a mais desafogada crítica dentro do partido. Pelo contrário, vive dela. Se somos precisamente um partido de livre exame, não o havíamos de fazer só aos actos dos outros, mas aos nossos próprios actos também, é claro! Porque é que os partidos monárquicos se despedaçam e esfacelam? É porque entre eles não há ideias, não há lutas de princípios, E porque é que o Partido Republicano se robustece dia a dia mais? É que cada dia vão cabendo melhor dentro dele todos os ideais humanos. Politicamente, economicamente, religiosamente, têm dentro dele lugar todos os liberais, desde os mais conservadores até aos mais radicais, desde o capitalista até ao proletário, e desde o livre-pensador até ao crente católico. Somos a liberdade, a tolerância para todos, inclusivamente para os adversários, e é até por isso que, sendo de todos a nossa causa, havemos de vencer. A luta de ideias modera e refreia a luta de interesses e de paixões, apazigua.
Nós reunimo-nos tanto mais quanto mais discutimos. Sejamos, pois, um partido tanto de crítica, que nem com os seus excessos nos alvorocemos. Há críticos que, à força de querer dar mais uma opinião ao partido, não aceitam nunca a dos outros, nem por muito tempo a sua própria? Desculpem-se ainda os que vão na campanha da sua crítica até ferir por vezes o partido. Coitados! Façamos justiça ao sentimento que os move. Eles são como certas pessoas tão zelosas da sua família, que, ao menor defeito que lhe imaginam, irritam-se extraordinariamente com ela. Não é preciso que ninguém do partido, nem o seu directório, os avise, porque eles sofrem logo o doloroso castigo de ser avisados pelos adversários, que lhes reproduzem e perfilham pressurosamente, com irónico aplauso, as suas palavras. E sucede-lhes como quando, depois de grazinarmos demais nossos filhos em público, ouvimos estranhos dizerem o mesmo mal deles: ficamos furiosos!
Temos certamente uma disciplina, mas voluntária. O Directório está obrigado a expor as suas opiniões lealmente aos seus correligionários, mas escusado será acrescentar que não pretende nunca impô-las a nenhum. Estamos num partido onde não há dogmas. Governa-o a cada hora quem, ainda que fora dos corpos dirigentes, achar e exprimir a fórmula que se esboça na consciência geral republicana. Esse, se não está no directório, é quem governa de facto, e para lá irá de direito na primeira ocasião. Por isso, no Partido Republicano não é lícita a revolta contra os governantes, e, se algum conspirador a tentar, só se for para se adestrar cá dentro para a grande revolta lá de fora. Não faz muito mal!
De resto, na moral, como nas ciências físicas, há verdades adquiridas, principalmente já solidamente demonstrados, pelos quais estamos todos ligados superiormente. Perante eles cessam todas as nossas divergências. Todos temos um programa comum dentro do Partido Republicano. E são as verdades, os princípios inscritos na nossa bandeira que neste momento desfraldamos na arena das eleições locais.
Pugnamos, antes de tudo, pela emancipação política das localidades, pela sua autonomia, de tal modo que nenhuma delas seja a inimiga das outras, mas, respeitando mutuamente a sua independência, todas convirjam ao mais perfeito consenso para o funcionamento integral da nação. Esta emancipação é a da localidade; mas há a dentro dela também a de cada um dos seus concidadãos, a quem pertence de direito, seja quem for, o voto directo na gestão dos negócios locais, e há a de cada partido, a quem igualmente de direito pertence ter nos corpos gerentes uma representação proporcional às suas forças. É o exercício de todos os direitos locais, toda esta vida política regional, queremos que se difunda logo na instrução e educação cívica por todos os membros de cada comunidade.
Propugnamos juntamente pela emancipação económica das localidades. E, para isso, reclamamos o equilíbrio do seu orçamento – nada de deficit e nada de novas dívidas! – e reclamamos a extinção progressiva de todos os monopólios, para que as localidades administrem cooperativamente os bens colectivos. Conhecem a história do galego, recém-chegado a Lisboa? Escrevendo à família, dizia: – «Esta gente é boa, mas tola; a água é dela e nós vendemos-lha.» É o que se passa com as múltiplas companhias, em cujas mãos se têm amortizado quase todos os rendimentos locais. Aproveitemo-los escrupulosamente. E, levando ao governo local homens de negócios, habituados a poupar, amealhemos, sobretudo, para os pobres. Onde, como dantes, os baldios para eles? Pois devem tê-los por toda a parte. Luz, ar e água para os pobres! Construa-se em Lisboa uma casa para as reuniões do povo; construam-se casas baratas para operários, desobstruindo para os arrabaldes os velhos bairros infestos à saúde e à moral da cidade; construam-se escolas primárias – hoje só há uma com edifício próprio! – construam-se balneários públicos – ainda hoje não há nenhum! E subsidiem-se generosamente com quanto se possa todas as obras de higiene e de assistência popular e, sobretudo, maternal e infantil.
Finalmente, reivindiquemos para as corporações territoriais a liberdade de amar, o que se pode chamar a sua emancipação religiosa. Até agora as festas locais têm-se celebrado quase só em honra dos grandes e poderosos. Que de futuro haja, sobretudo em cada terra as festas do nosso carinho pelos humildes, pelos pequenos, as festas do povo e das crianças! Sobretudo para o povo e para as crianças se aformoseiem as ruas, os parques e jardins das cidades!
E advirtamos que toda a autonomia local tem de começar logo no acto eleitoral, está inicialmente nas mãos do eleitor. Eleições locais livres vibram o primeiro golpe no caciquismo e, portanto, na centralização administrativa, na tirania do Estado, no arbítrio monárquico. E tanto isso se compreendeu quase por toda a parte, que o grito de emancipação é: lista republicana! Ou então: lista da localidade! Isto é, onde a lista não pode ainda ser toda republicana, quer-se uma lista não política, para que não seja monárquica, para que não tenha a cor irritante de nenhum dos partidos, ou antes, de nenhuma das clientelas da Monarquia. E com razão! Faz grande diferença uma corporação de homens independentes ou de serventuários do poder. Sem cidadãos livres não há liberdades públicas.
Há monárquicos que não temem o nosso programa? Aceitemos a cooperação de todos os homens bons. Que venham connosco! Nada de acordos com caciques, com mandões das clientelas; mas estejamos sempre prontos a abrir os braços a todos os concursos desinteressados e altivos. Não pretendo descobrir a lei da atracção universal de todos os portugueses, nem mesmo sequer de todos os republicanos. Sei bem quanto é difícil a mais elementar das operações, a soma, quando se trata de homens. Mas não me cansarei jamais de pregar a atracção, a paz, na sociedade portuguesa. Contradição de revolucionário? Não! Eu sou revolucionário, como o médico de Molière, mau grado meu, ou, como Castilho traduziu, à força.
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