terça-feira, 22 de abril de 2014

Bernardino Machado, os livros e as crianças


Neste dia mundial do livro 23 de Abril de 2014, nada como repescarmos algumas ideias de um dos mestres pedagógicos mais notável dos finais do século XIX, Bernardino Machado. Nestes simples pensamentos, observamos o papel do livro  na evolução da criança, perante as suas condições psicológicas, condutas sensoriais e motrizes, concretas e práticas, intelectuais e morais. Indiscutivelmente, para o Dr. Manuel Sá Marques, com o meu abraço de fraterna amizade. Estes epigramas são retirados do Tomo II da "Pedagogia" das Obras de Bernardino Machado, publicadas pela Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, Museu Bernardino Machado e pelas Edições Húmus, de Vila Nova de Famalicão.
 
  • Só as dificuldades atraem a vontade. Eu pedia aos pequenos que me tirassem o pó dos livros; e, como um volume tivesse a capa com bolor, disse:«Limpem bem este, porque está todo cheio de nódoas». Veio logo a Quininha:«O papá dá-me um todo cheio de nódoas?». Do seu lado, Domingos, incumbido simplesmente de sacudir o pó dos que tinha levado, deu-lhes uma esfregação mestra.
  • Que diferença entre vários intelectuais tão embotados e as cabeças virgens das crianças! Uma, que anda na aula de primeiras letras e já vai lendo com desembaraço, pede-me um livro. Dou-lhe uma pequena história de Portugal, e ela fica ali presa, ao pé de mim, a abrir-lhe as folhas e a lê-la, a meia voz, que nem a voz pode conter, de satisfeita.
 
  • Paixão infantil da grandeza. – «Papá! Dá-me um grande?» –, diz a Gigi, pedindo-me um livro.
  • A paixão egoísta da propriedade. A Gigi, com o seu livro de figuras, quer que eu lhas explique, mas sem ninguém mais as ver; e ao virem os irmãozitos sentar-se também ao pé de nós, ela levanta-se logo de golpe e, pegando no seu banquinho, que não larga, puxa por mim para longe:«Para aqui, papá! Para aqui!» –, para onde estejamos bem sós.
  • Para não haver o trabalho de vigilância, suprime-se tudo às crianças, e acaba-se por suprimi-las a elas mesmas. Não se deixam brincar para que não rasguem a roupa, não dêem cabo dos móveis, ou não pisem os canteiros do jardim; não se deixam sequer mexer, para que não vão fazer alguma maldade. Até as salas onde estariam com mais desafogo lhes fecham, porque as podem sujar. Encurralam-se, emparedam-se. Há mais cuidado com as coisas do que com elas. E não só para que não dêem trabalho, mas também para que nos não incomodem, hão-de estar, além de quietas, caladinhas. Deixá-las-ão ao menos meter-se a um canto, quietas e caladas, a ver figuras, a ler? Não, porque nem uns livros interessantes lhes dão. Têm medo de que os estraguem. Imobilidade absoluta!
  • A primeira leitura. A Gigi, com um manuscrito meu. «Eu sei ler». E, olhando para o papel: «papá Machado, mamã Machado, Rita Machado…». Eis o que as crianças procuram nos livros: assuntos familiares. Porque não lhos dão?
  • Também o coração faz a sua educação intuitiva. A criança ama os pais e avós, os irmãos e as outras crianças, os gatos, os pássaros, as flores, as pedrinhas. E como as pequenitas querem às bonecas, isto é, a uns serezinhos já confiados à sua guarda e protecção! «Papá, dá um livro para a boneca ver figuras?», pede a Gigi.
  • Ai, a leitura! Cautela, que ela não seque os corações! «Adeus!», diz e repete ternamente uma pequerrucha, a correr num carrinho pelo declive da rua. «Adeus!», responde-lhe já um pouco distraída a irmã maiorzinha, com um livro aberto diante dos olhos.
  • Generosa bibliófila. Visto um livro ilustrado, a Gigi pede mais:«papá, compre muitos livros à Gigi. Eu quero comprar muitos livros a mim. É para mostrar à mamã e aos manos. O papá dê o dinheiro, e eu compro». Como ela sabe já tão bem a função – que neste caso me não atrevo a chamar económica – da moeda!
  • Uma discípula de três anos. Estou a ler, de pé, a uma escrivaninha alta. Surge a Gigi. Percebe que o livro é ilustrado, e quer vê-lo. Vou para lho dar. Mas ela: «quero ver aí». E, puxando por um banco: «a Gigi põe-se aqui em pé e pode ver aí». Trepada já sobre ele: «eu ponho-me em pé e chego cá». Abraçando-se a mim: «este livro tem muito fegura». E logo, como quem se emenda: «tem muitas feguras». Num instante folheia-o todo, a princípio com muita atenção, depois de corrida, por fim vertiginosamente. Com que ardor a criança quer ver e aprender tudo! E tudo se tem de lhe mostrar e explicar num relâmpago, instantaneamente. Senão impacienta-se, exaspera-se. Parece-lhe que não sabemos nada bem, que tudo nos custa a entender. E, por mais que façamos, dentro em pouco, nem nos escuta: lá vai automaticamente desgarrada no seu movimento de curiosidade, gozando tanto com ele, que já lhe não importa ver nem aprender mais nada. Nós estacamos, espantados da carreira do seu espírito, apertando-a mais entre os braços, como se tivéssemos receio de que, no seu arrebatamento interior, ela pudesse cair-nos do colo abaixo.
  • As edições ilustradas são bem do nosso tempo, pelo que popularizam e tornam familiares as grandes obras. E o povo e as crianças vão-se interessando por esse meio de de instrução. A Gigi mostra-me um livro que lhe deu o sr. Hincker. «Mas, se a menina não sabe ler…?». «Tem figuras!», corta-me ela de pronto a dúvida. Como quem quisesse daí inferir: logo é também para os pequeninos como eu, serve-nos.
  • Em família, de companhia, em sociedade, sobretudo de gente nova, nada custa. Nem a gramática. Julguei que as crianças não pudessem levá-la sem imenso enfado; mas podem, ainda da mama. Aqui está como a Maria estuda e ensina a lição que trás para amanhã. Com o Inacinho, que não fez sequer três meses, ao colo, e com o livro na mão, adiante, cantarola ao pequeno as conjunções disjuntivas «Ou, ora… ora, quer… quer; já… já», e, voltando atrás, como quem o incita a decorar melhor: «diga lá! Olhe que eu zango-me! Como se dividem as conjunções? Não sabe? Ora diga: em coordenativas e subordinativas. Compreendeu? E as coordenativas? Vamos para diante. Quais são as copulativas? (outra vez a cantar) e, nem, também, não só…, mas também. Ai o Inácio, que não estuda! Que dirá o mestre?». Não sei o que o mestre dirá; eu é que afianço que desta maneira não é só o Inácio que parece gostar da gramática, até eu. E prometo não tornar a dizer tanto mal dela; nem hei-de já granizar tanto com os que a infligem aos meus próprios filhos.
  • Para as crianças tudo ainda são novidades e acidentes a recontar nesta viagem da vida. Por isso a Gigi, numa simples referência à estante das irmãs, fala a linguagem noticiosa de um explorador de regiões ainda não perscrutadas:«papá, aqui se encontram livros, figuras e brincadeiras». Ela é efectivamente a denodada pioneira da sua própria civilização.
  • Gostam de bric-à-brac? Mas muito melhor que o das gerações extintas é o das novas gerações. Nada mais documental, mais flagrante; e nada mais variegado, nada tão decorativo nas sua incomparável desordem. Vejam a minha banca de trabalho. Não lhe falta nada, a não ser lugar para eu escrever. São livros desfolhados, bonecas partidas, trapos, carruagens sem rodas, cavalos estropiados, restos de mobiliário, flores, pedrinhas. Um museu! Assim se vão salvando as relíquias infantis. É o lugar mais seguro para elas. Mas os meus créditos de conservador periclitam, decaem, porque, abaixo dos pequenos, há ainda os pequeninos, e eu a estes não resisto, dou-lhes tudo, até, parece incrível! preciosidade tais, [que] deploram aqueles.
  • As crianças estão a indicar-nos que o ensino do canto e do desenho deve preceder o da leitura e escrita. Todas começam a ler, cantando as palavras do livro; e a escrever, desenhando as do modelo.
  • A Zirinha, dezanove meses, trepa ao banco do piano e começa a tocar; mas logo lhe lembra que falta alguma coisa e desce de corrida para tirar da estante um livro de música. Assim é tanta gente no seu culto por formalidades que não entende e lhe não servem para nada. Mas satisfazem o seu sentimento de respeito pela ordem estabelecida, o que não deixa de ter sua virtude disciplinar.
  • Levo um novo livro de contos aos pequenos. São lindos! Digo-lhes. E logo o Domingos: «foi o papá que os fez?». Se são lindos! E tive pena de lhe não poder responder que sim, não só porque eram realmente bonitos, mas sobretudo porque já lhes não ficariam talvez a parecê-lo tanto.
  • Ele é preciso moderar a paixão com que a gente nova se entrega, arrebatadamente, à leitura, esquecendo tudo, alimento, família, dever. Mas também aquilo que se não ler nesse período da vida, de curiosidade devoradora, a custo mais tarde, quando os cuidados são tantos, se encontrará tempo para lhe dedicar. Os dias e meses que tenho ao pé de mim os mais atraentes livros sem os poder abrir sequer!
  • Gigi, trazendo-me um livro ilustrado, para que eu lhe conte o que diz:- – «oh! papá, este há-de ser engraçado!». Mas, ao folheá-lo para diante, aparece-lhe um porco-espinho. E ela:«ai! que bicho feio! vou escondê-lo, que ele mete medo à gente». E fechou de golpe o livro, e foi enterrá-lo na estante. Pode mais a impressão do que a curiosidade.
  • Não é só quem conta um conta, que acrescenta um ponto; é logo quem o lê. Não há quem no que leia, não ponha alguma coisa de sua cara. E a Gigi, que só tem 4 anos, como ainda não sabe ler, que há-de fazer senão pôr em tudo de novo inventar tudo? Por isso, assim que lhe dizem que um livro é de histórias, ela abre-o, e, com os olhos fitos nele, improvisa logo ali a seguir umas poucas, bem melhores, às vezes, do que muitas do livro. Eu até as aponto. E ela então, modestamente admirada do seu sucesso:«papá escreve tudo que eu digo, e as histórias que eu conto, tudo, tudo?».
  • O seu gosto, porém, de inventar histórias não vai até permitir que lhe preguem alguma mistificação. Se a desengano:«isto é um dicionário!», ela mostra-se deveras escandalizada. «Não é livro de histórias?»e corre a devolvê-lo a quem lho emprestou. A sua inspiração precisa de um ponto de apoio real, sincero. E quer brincar, mas com dignidade. Não representa para maliciosos, não está para entreter quem pretenda desfrutá-la. A mortificação moral sobrepuja todos os gozos.
  • É ainda só a força emocional do sentido muscular e táctil o que leva crianças e mesmo muitos alunos a desejarem, ardentemente, a posse de um objecto, e não o legítimo amor da propriedade, que ambiciona instrumentos de trabalho e produção para melhor servir o progresso da economia social. A Zirinha, aos guinchos, foge, com o seu livro de figuras, do Inácio, que ameaça arrebatar-lho; mas nisto encontra uma solução amigável: põe o livro sobre uma cadeira, chamando pelo irmãozinho: «venha ver comigo!». Qual! Ao pequeno não lhe basta vê-lo, quer pegar nele, tê-lo nas suas próprias mãos, segurá-lo, apalpá-lo. Por isso, puxa por ele, violentamente, para si, e, à resistência da Zirinha, pula e vai aos ares, furioso, possesso de cólera. Não leva a melhor, é claro. E, vencido, corre para mim, tirando-me pelos dedos, para que eu, que devo acudir sempre pelos fracos, terce em seu favor na contenda. Interponho, efectivamente, o meu pedido: «Zirinha, deixe-o pegar no livro um bocado, que ele não lho estraga». E é assim. Mete-o, vitoriosamente, debaixo do braço; mas nem o abre sequer, todo contente de o sentir consigo, bem colado ao corpo.
  • Os meus filhos, como se vê que são irmãos! Tendo-me um infeliz rapaz tirado do meu gabinete um livro, e contando eu o meu desgosto, por isso, primeiro à Manuela e depois ao António, diz-me logo ela: – «de certo o torna a pôr no seu lugar para a outra vez», e ele: «não lhe fica com o livro. Qual! Lê-o e trá-lo». Nem um, nem outro acreditava na possibilidade de um roubo.
 
 

domingo, 6 de abril de 2014

Norton de Matos, o militar civil


Decorreu no dia 4 de Abril, no Museu Bernardino Machado, mais uma conferência do ciclo “Ideias e Práticas do Colonialismo Português”, tendo sido o conferencista convidado o Prof. Sérgio Neto que proferiu a conferência “De Goa a Luanda: pensamento e acção de Norton de Matos”. O Prof. Sérgio Neto, na sua conferência, fez uma análise ao percurso colonialista de Norton de Matos em vários tópicos, até à candidatura presidencial de 1949. Partindo do pressuposto que Norton de Matos defendia para as colónias, e em particular para Angola, uma governação civil em vez de uma governação militar, o Prof. Sérgio Neto analisou inicialmente os pressupostos ideológicos coloniais de oitocentos baseando-se essencialmente no darwinismo social e no mito ariano ou na análise de propaganda realizada no campo literário, através de Júlio Verne, Emilio Salgari ou de Joseph Conrad, focando e contextualizando a polémica portuguesa em volta da centralização e da descentralização. Relativamente a Norton de Matos, analisando as influências familiares e as suas leituras, nomeadamente as de John Lock, Voltaire, David Hume, Adam Smith, Jeremy Bentham e, mais tarde, em Coimbra, onde tirou o curso de Matemática, Proudhon, Marx, Comte ou Spencer, as quais vão ter influência no seu pensamento, o Prof. Sérgio Neto falou-nos, partindo do início da carreira militar, da primeira experiência colonial (na Índia, em Goa), na qual Norton de Matos chegou a escrever um “Manual do Agrimensor”, na medida em que foi director dos serviços de Agrimensura na Índia, estabelecendo a demarcação dos prédios urbanos e rurais, criando serviços de raiz, recrutando locais. Até à República, o percurso de Norton de Matos ficaria estabelecido pela nomeação de outras comissões, considerando, mais tarde, que na Índia “a minha vida foi uma iniciação”. Aderindo ao Partido Democrático em 1911, Norton de Matos seria nomeado Governador Civil de Angola (1912), iniciou-se na Maçonaria (1912), Ministro da Guerra (1914), realizando o “milagre de Tancos” na organização do C. E. P., mesmo com os seus defeitos. O segundo consulado em Angola, desta vez como Alto-Comissariado (1920-1921), Norton de Matos ressalva o seu projecto, que era essencialmente, nas suas palavras, “uma obra verdadeiramente económica”. A base desenvolvimento seria a agricultura, depois desta o comércio e, finalmente a indústria. O projecto modernizador e descentralizador para Angola passou pela criação de um quadro de funcionários, acabar com a exportação e degradados, fomentar a emigração, o desenvolvimento das vias rodoviárias, o desenvolvimento da educação e da instrução, a proibição das armas e das bebidas alcoólicas, sendo Angola vista na sua ideia como o prolongamento de Portugal, entre outras ideias, para que a posse civil do território fosse uma realidade. Embaixador de Portugal em Londres (1924-1926), o programa de Norton de Matos para o desenvolvimento de Angola seria criticado entre o despesismo e a prepotência, caindo, na ideia do Prof. Sérgio Neto, em algumas contradições, caso da ideia mística imperial, retomada pelo Estado Novo, ou mesmo, já na fase final, a ideia paternalista e a ideia de proteccionismo face às colónias. Se Norton de Matos foi o criador do império português, por outro lado, assistiu igualmente à destruição, como foi com o caso da Índia.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Norton de Matos


O orador convidado para a próxima conferência do Ciclo “Ideias e Práticas do Colonialismo Português” é o professor Sérgio Neto, com o título “De Goa a Luanda: pensamento e acção de Norton de Matos”. A conferência, que se realiza no Museu Bernardino Machado (V. N. de Famalicão) no próximo dia 4 de Abril pelas 21h30, é de entrada livre e os participantes receberão o certificado de presença. O professor Sérgio Neto é licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (2000), tendo-lhe sido então atribuído o prémio Eng.º António de Almeida. Investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS20), concluiu o Mestrado em História Contemporânea (2007) e encontra-se inscrito no Doutoramento em Altos Estudos Contemporâneos (Universidade de Coimbra), com uma dissertação que versa o pensamento colonial de Norton de Matos, aguardando a marcação das provas públicas. Professor do ensino básico e secundário, lecionando presentemente no Agrupamento de escolas Domingos Sequeira (Leiria), Sérgio neto tem vindo a desenvolver investigação sobre a história político-cultural de Cabo Verde desde 2001, ganhando o prémio “Estímulo à Investigação”, do Serviço de Ciência da Fundação Calouste Gulbenkian. Publicou “Colónia Mártir, Colónia Modelo. Cabo Verde no pensamento ultramarino português (1925-1965) (Coimbra, 2009), obra que foi distinguida com uma Menção Honrosa do prémio Victor de Sá de História Contemporânea para Jovens Investigadores (Universidade do Minho).