sábado, 31 de dezembro de 2011

rousseau, camilo e manuel laranjeira


para o próximo ano temos três prendas fantásticas: o tricentenário de jean-jacques rousseau, os 150 anos da publicação do "amor de perdição" e o centenário de falecimento de manuel laranjeira. entre ambos, podemos realizar leituras interdisciplinares, rousseau com camilo e manuel de laranjeira com camilo. a seu tempo daremos aqui notícia dessas mesmas relações. para já, ficam aqui alguns breves apontamentos. um ano de boas leituras, é o que se deseja.


“Gregório, com o papelinho das perguntas e requisições na mão, lá perguntando e pedindo; porém, o mestre olvidara-se de adivinhar as respostas, e escrever ao lado a tradução.
Não obstante, bem dizia o capitalista que com dinheiro, e mesmo sem boca, se vai a Roma. Como levava carta dum ex-ministro da sua intimidade para o nosso ministro em França, foi-lhe logo dado um intérprete, que, sobre lhe aplanar as dificuldades de se fazer entendido, o forneceu de provisão de termos franceses bastantes para dar uma volta à roda do Globo, levando dinheiro, que é indisputavelmente a língua universal.
Com uma carta que levou de Paris para Genebra, conseguiu Gregório saber de pronto onde morava Augusto, e não se deteve na cidade de J. Jacques Rousseau, mesmo porque o nosso viajante, quando lhe indicaram em mau espanhol a casa do filósofo, voltou-se para a senhora D. Rosa, e disse:
- Que nos importa a nós saber onde morou o homem?
- Deus tenha a sua alma no Céu – disse D. Rosa –, se ele fez por isso.
O cicerone, que não entendia a língua, inferiu do aspecto contemplativo de D. Rosa que a casa de Rousseau impressionara vivamente os portugueses. (Não se agravem os meus patrícios da carta de naturalidade que dou ao senhor Gregório. Se tivéssemos vinte como aquele, a nossa civilização material estaria num pé muito mais adiantado. Saibam que a ele se deve a estrada que liga Valongo ao Porto, e a conservação do ministério que mais viação pública fomentou.)
O guia dos nossos amigos, quando chegou ao cais, que, a pequena distância de Genebra, corta o lago, formando uma enseada para os barcos, entusiasmou-se quanto ao seu ofício de indicador lhe impunha, e chamou a atenção dos viajantes para o majestoso espectáculo, que os rodeava. Mostrou-lhes as serras boleadas do Monte Branco com o seu diadema de gelo. À esquerda, apontou-lhes a cordilheira de Jura, cuja cor pardacenta contrasta com o alvor das serras alpinas. À beira do lago, indicou-lhes os centenares de povoações que as águas espelham, as águas dum formoso anil, escamadas de cintilantes safiras quando a lufada da brisa lhes encrespa a superfície. Entre as povoações avultavam Vila Nova, a cidade de Lausana.
Quis o condutor que os viajantes entrassem na casa que habitava Stael, quando o desafecto de Napoleão a levou a conspirar em terra estranha, mas formosa terra escolhera aquela varonil alma para lutar, soberana do espírito contra o soberano da força!
Estas e outras coisas dizia o francês aos nossos viajantes; Gregório, porém, umas não lhas entendia, outras achava-as extremamente secantes.
Enquanto a D. Rosa, essa, de vez em quando, cortava a veemência noticiosa do francês, para lhe perguntar onde era a casinha de Augusto.
Respondia-lhe o oficioso guia que deviam ver o castelo de Ferney, onde Voltaire habitava, e lá veriam o leito, as cadeiras, a mesa, tudo, no quarto em que Voltaire dormia, e na mesma disposição em que o deixara o eminente reformador do mundo. Não esqueceu ao entusiasta do filósofo de Ferney aguçar o apetite boto dos viajantes, dizendo-lhes que lá veriam também um cinerário de mármore com seu epitáfio, destinado a entesourar o coração de Voltaire.
O senhor Gregório, já impaciente, voltou-se para a consorte, e disse a meia-voz:
- Já viste uma coisa assim?
- O homem tem demónio a falar nele. Deus me perdoe! – disse a senhora D. Rosa.”

Camilo, Coisas Espantosas


"A verdade é algumas vezes o escolho de um romance. / Na vida real, recebêmo-la como ela sai dos encontrados casos, ou da lógica implacável das coisas; mas na novela, custa-nos a sofrer que o autor, se inventa, não invente melhor; e, se copia, não minta por amor da arte. / Um romance, que estriba na verdade o seu merecimento, é frio, é impertinente, é uma coisa que não sacode os nervos, nem tira a gente, sequer uma temporada, enquanto ele nos lembra, deste jogo de nora, cujos alcatruzes somos, uns a subir, outros a descer, movidos pela manivela do egoísmo. / A verdade! Se ela é feia, para que oferecê-la em painéis ao público!? / A verdade do coração humano! Se o coração humano tem filamentos de ferro, que o prendem ao barro donde saíu, ou pesam nele e o submergem no charco da culpa primitiva, para que é emergi-lo, retratá-lo, e pô-lo à venda!? / Os reparos são de quem tem o juízo no seu lugar; mas, pois que eu perdi o meu a estudar a verdade, já agora a desforra que tenho é pintá-la como ela é feia e repugnante. / A desgraça afervora ou quebranta o amor? / Isto é que eu submeto à decisão do leitor inteligente. Factos e não teses é o que eu trago para aqui. O pintor retrata uns olhos, e não explica as funções ópticas do aparelho visual."

Camilo, Amor de Perdição


"Dir-se-ia que Camilo na sua obra, mais do que a ficção da vida, pretendia realizar a própria vida."

"... porque ele possuía o segredo divino do riso imortal e das lágrimas imortais, porque ele sabia, como ninguém, rir tragicamente, venenosamente, a soluçar tragicamente, contagiosamente, é que nenhum escritor em Portugal é tão lido, tão amado, e tão odiado. Na sua obra não há apenas a bebida confortante; há também o veneno doloroso; há o choro que enternece e alevanta, e o riso que envenena."

Manuel Laranjeira, "Camilo Castelo Branco", Prosas Perdidas

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