quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Uma Aventura Camiliana entre a Filosofia e a Literatura





Imagem do livro de José Viale Moutinho "Camilo Castelo Branco: memórias fotobiográficas (1825-1890), representando a Igreja do Salvador, em Ribeira de Pena, onde casaram Camilo Castelo Branco e Joaquina Pereira de França.



UMA AVENTURA CAMILIANA ENTRE A FILOSOFIA E A LITERATURA

Por Amadeu Gonçalves

Ao saudoso Mestre e Amigo Dr. Manuel Simões

“… uma cousa chamada «filosofia?, ciência que foi necessário inventar-se, à medida que umas certas virtudes de portas adentro deram em saltar pelas janelas; e voar por aí fora, não sei para onde..." (Camilo, “Amor de Salvação”)

“O romancista é como o estatuário: este, na escultura de um busto decente e modesto de mulher, não se entusiasma copiando os lugares-comuns da natureza. Eu imito o primeiro e o segundo.” (Camilo, “Anátema”)

“A filosofia é mais circunspecta nas suas respostas. O escalpelo do romancista vai mais dentro, e afasta fibra a fibra as camadas de tecidos exteriores de que as turbas se impressionam para os seus juízos sempre errados, empíricos, ou estúpidos.” (Camilo, “Anátema”)

“Não escrevo novelas, nem tragédias, mas gosto de imaginá-las…” (Camilo, “Livro Negro do Padre Dinis: continuação dos Mistérios de Lisboa – II”)



Camilo alquimista? Porventura alquimista da singularidade humana, das essências humanas na sua ontologia existencial e histórica, na configuração linguística. Mais do que um idealista romântico-realista perante o conhecimento da interioridade do humano, Camilo materializa o sensível do mundo e do ser na corporeidade das palavras entre uma mesmidade e uma alteridade do mundo em nós, entre a imaginação e esse auto desdobramento ficcional para o dizer das coisas deste mundo. Possivelmente, quatro grandes tópicos poderão ser abordados nessa viagem entre a Filosofia e a Literatura, em obra ficcional tão profícua: uma fenomenologia do amor (na tipificação mítica de Pigmalião), uma dimensão antropológica (a problemática da felicidade) e uma dimensão teológica (a questão da secularização) e uma dimensão histórica. O que se pretende é resgatar mundos para uma maior compreensão da riqueza textual camiliana. Tal como Camilo nos diz em “As Três Irmãs”: “Falaremos ainda muito, e depois, na eternidade.” A aventura é interminável, impossível, mas possível, e convém abrir novos caminhos interpretativos, no papel ético da Literatura, tal como Camilo o defendia. Neste sentido, evoco aqui Jacinto do Prado Coelho, entre duas viagens programáticas: a primeira, quando, no ano já ido de 1946, no prefácio à 1.ª edição da sua mais do que “Introdução ao Estudo da Novela Camiliana”, afirma que “falta, por exemplo, esta coisa fundamental: estudar a novela de Camilo em si mesma (filosofia da vida, personagens, estrutura, processos), dentro do género «novela» e dum ponto de vista histórico-evolutivo, quer dizer, sem perder de vista a cronologia, ou seja, procurando ver como nasce e cresce e se transforma a novela camiliana.” A segunda, colocando em questão, senão mesmo a impossibilidade de um “inventário de temas” para se procurar a explicação da obra. A crítica de Prado Coelho reflecte aqueles que se preocuparam mais com uma hermenêutica biográfica (salvo, acrescento, algumas excepções). Mas o sentido da “filosofia da vida” na textualidade camiliana esse é o sentido que poucos ainda se aventuraram a explorar, numa viagem entre a Filosofia e a Literatura. Foi, precisamente, Prado Coelho que me inspirou, aqui há uns anos, nessa aventura camiliana, nessa busca de um mundo no qual a ficção camiliana se transfigura. Contudo, sabemos, e Camilo sabia-o bem, tal como Harold Bloom também o sabia: a literatura não é unicamente linguagem. Camilo aproxima-se da metáfora de Nietzsche naquilo que poderá ser a Literatura, como vontade de figuração, isto é, o desejo de ser diferente, o desejo de estar noutro lugar. Não só para suplantar aqueles dois mundos que Eduardo Lourenço soube bem redefinir, o da nossa portugalidade na mutação de meados de oitocentos, entre uma monarquia absoluta que não tinha fim e um liberalismo propenso às invectivas camilianas, mas também como salvação. Melhor, outros exemplos poderia edificar, nas palavras do tio de Ladislau de “O Bem e o Mal”: “Nos livros aprendi a fugir ao mal sem o experimentar.” Mas, a essência do humano em termos filosóficos, e transportada para a ficção, podemos encontrá-la na crítica que Camilo efectua a Espinosa, a propósito da tradução anotada que realiza ao livro “Jesus Christo perante o Seculo ou novos testemunhos das sciencias em abono do Catholicismo”, de Roselly de Lorgues. Um dos únicos, senão mesmo um dos únicos estudos desta relação entre Camilo e Espinosa, devemo-lo ao jesuíta Mário Martins, evidenciando que afinal de contas o então seminarista portuense não desperdiçou assim tanto o seu tempo. Na realidade, nas dez anotações que Camilo então realizou, com aproximações aos mitos escatológicos cristãos, elas poderão ter as seguintes indicações titulares, a saber, i) o materialismo espinosista; ii) imortalidade da alma; iii) corrupção e imoralidade; iv) cosmogonia; v) geologia e dilúvio; vi) naturalismo; vii) do materialismo astrónomo; viii) profecias; ix) analogia, o que terá em análise as últimas consequências do ateísmo. Ateísmo, diga-se, de passagem, que será uma sequência do indiferentismo religioso que Camilo fala na introdução no livro em causa. Surge-nos aqui, na contextualização ficcional camiliana, um tema profícuo: a secularização. Assim sendo, não deixa de ter razão Bigotte Chorão quando nos diz que “houve até quem defendesse que em obra tão quantiosa e temperamental não se encontra uma só ideia – apenas paixões. Opinião mais do que discutível – errada. Decerto que Camilo não é o que se chama um «escritor de ideias, mas seria excessivo considerá-lo desprovido delas, como se as milhares de páginas que escreveu lhe dessem só o estatuto de contador de histórias, onde não houvesse senão amores, e rancores, e humores.” Consciente do tempo em que escreve, tal como nos diz em “Lágrimas Abençoadas”, Camilo explora na sua textualidade várias temáticas. A já falada, a secularização, poderíamos inculcá-la no tema mais geral da Filosofia aqui incorporando igualmente o materialismo de oitocentos na sua relação com as personagens, uma hermenêutica da cultura na sua relação historiográfica (miguelismo, liberais e realistas, sebastianismo, Maria da Fonte, invasões francesas, liberalismo, etc.), a Literatura (entre a intertextualidade e uma meta-literatura) e a sua dimensão ética. Paralelamente, a questão antropológica ou a dimensão teológica no seu diálgo com o racionalismo e o tema genérico a que chamo de uma Fenomenologia do Amor, entre os mitos gregos e cristãos, em busca da felicidade, entre uma ética das virtudes e de expiação. Se existe filosofia na ficção camiliana, nas palavras de Fialho de Almeida, será nesta “falta de fé na felicidade: neste conceito que pôs no seu espírito um tão amargo travor das coisas da existência.” Contudo, Camilo contradiz-se muitas vezes nos seus próprios conceitos, refugiando-se nas personagens enquanto alter-egos. Estas são apenas algumas ideias temáticas para um “Dicionário Camiliano Temático”. Dou o exemplo, como outros poderia dar, desta configuração temática camiliana para uma interioridade textual e, ao mesmo tempo, desconfiguração textual, o caso de “Onde Está a Felicidade”. Estamos perante uma ficção em que a dimensão da Literatura e particularmente a dimensão de uma Fenomenologia do Amor estão bem patente. Veja-se uma vítima do romance, Guilherme de Amaral, relacionando-o Camilo com o mito de Pigmalião, ou a personagem feminina Augusta, relacionando-a com o mito da queda cristão. Enfim, esta trasladação temática entre a Filosofia e a Literatura pode ter os seus riscos, mas não custa nada tentá-la. Camilo merece.

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