segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Livros e Bibliotecas

Para a Dr.ª Manuela Barreto Nunes


O painel de azulejos de Fernando Lanhas, o sol com os seus raios solares, à entrada da Biblioteca Municipal Camilo Castelo Branco (doravante BMCCB), leva-me ao texto mítico de Umberto Eco “A Biblioteca”, quando aqui nos fala do livre-acesso à leitura, na ideia da Biblioteca como uma aventura. Cito:
Ora, o que é que há de importante no problema do acesso às estantes? É que um dos mal-entendidos que dominam a noção de biblioteca é o facto de se pensar que se vai à biblioteca pedir um livro cujo título se conhece. Na verdade, acontece muitas vezes ir-se à biblioteca porque se quer um livro cujo título se conhece, mas a principal função da biblioteca é de descobrir livros de cuja existência não se suspeitava e que, todavia, se revelam extremamente importante para nós. É certo que essa descoberta pode ter lugar desfolhando o catálogo, mas não há nada mais revelador e apaixonante do que explorar as estantes que reúnem possivelmente todos os livros sobre um determinado tema – coisa que, entretanto, não se poderia descobrir no catálogo por autores – e encontrar ao lado do livro, que não se tenha ido procurar, um outro livro, mas que se revela fundamental[1].
O livre-acesso, assim estipulado por Eco, representa, efectivamente, o painel de azulejos de Lanhas: a Biblioteca como um ponto do universo, melhor, o círculo do universo não fechado mas aberto, ou na imagem de Jorge Luís Borges, um ponto do universo que se desdobra num horizonte de esperança e de fraternidade, numa diversidade única e irrepetível, eis os raios solares. Nesta perspectiva, quando Borges nos diz em “A Biblioteca de Babel” que a Biblioteca é um modelo do universo é porque, efectivamente, este paradigma, a do saber na sua plurabilidade humanista, representa e tipifica o humano, naquilo que tem de melhor e do pior. Nada mais. Eco, aqui, equivocou-se, pretendendo transformar o infinito dos hexágonos borgianos à medida do homem: a Biblioteca, enquanto universo, na imagem borgiana, é já o protótipo do humano, à sua imagem e semelhança. Desta forma, o que o painel de azulejos de Lanhas nos representa e nos diz é que a Biblioteca nos aparece como o sol, enquanto círculo do universo e de luz, o círculo da luz, e, por outro lado, na linguagem de Heidegger da “Carta Sobre o Humanismo”[2], a Biblioteca surge-nos, para ainda percebermos melhor a ideia de Lanhas, como uma “clareira do ser” e só esta “clareira do ser” é «mundo»; e se a Biblioteca surge como a representatividade da linguagem humana, a Biblioteca é a “casa do ser”, que se ramifica e se projecta no mais variado dos caminhos, os raios solares.
Citando novamente Heidegger, o “mundo é a clareira do ser na qual o homem penetrou a partir da condição do ser-projectado de sua essência”; e se somos ser-sendo em projecção inquietante, e sempre em busca de respostas, a Biblioteca, como sol, enquanto casa do ser no mundo como universo, é já o mundo, o mundo do ser que será aquilo que é o mesmo em nós, oferecendo respostas pelos raios solares, que são os livros que transportam a linguagem entre a ficção e a realidade. Por isso, a Biblioteca é o pior e o melhor do humano.
O que Eco não referiu foi algumas perspectivas borgianas, ou alguns axiomas: a Biblioteca existe abeterno e a natureza informe e crítica de quase todos os livros, por muito diferentes que sejam, contêm elementos iguais. Dos exageros e dos absurdos, Borges enumera-os como de superstições: quando se proclamou que a Biblioteca abrangia todos os livros, a primeira impressão foi a de uma “extravagância felicidade”; depois, a certeza de que, em alguma prateleira de algum hexágono, continha a Biblioteca livros preciosos e de que tais livros preciosos eram inacessíveis, essa era uma ideia intolerável. Uma outra superstição diz respeito a que alguns bibliotecários, suponho, acreditavam que a prioridade era encontrar as obras inúteis, esquecendo-se que cada exemplar é único e insubstituível (talvez para serem eliminados). Uma outra superstição diz respeito à ideia do “Homem Livro”, isto é, em alguma estante deve existir um livro que seja a chave e o resumo perfeito de todos os outros, abdicando-se assim a humanidade ao discurso da pluralidade crítica[3].
Por experiência própria, diga-se, já em plena democracia, numa ou noutra Biblioteca, apareciam-me ainda nos catálogos algumas fichas que no canto superior direito tinham a notação “reservados”; por outro lado, em plena época do Estado Novo, com a sua censura e o traço azul, no regulamento da BMCCB, de 1961, podemos ler que determinados livros só poderiam ser lidos com autorização escrita do Presidente da Câmara e do Vereador da Cultura. Outros tempos em que a ideologia suplantava o acesso à leitura e à informação, lembrando-me, por exemplo, do livro de Ray Bradbury “Fahreneit 451”[4], cuja sociedade queimava os livros para a sua protecção, projectando-se aqui os fascismos europeus (e outros ismos afins).
Tudo isto para dizer que só assim, na dimensão do humano, com todas as suas paradoxalidades, na pretensa busca da fraternidade humana (talvez seja este o elo de ligação ao painel de escultura de madeira de Paulo Neves) se pode compreender o painel de azulejos de Lanhas: a Biblioteca que surge como um sol que se ramifica com os seus raios e os livros que se ramificam em leitura, para descobrir o mundo em nós; e para este sol que se ramifica em clareira de raios de esperança, esse círculo sempre aberto, há uma história.
Conforme nos diz António Joaquim Pinto da Silva: “Qualquer instituição tem a sua história. Mais ou menos feliz, mais ou menos consequente e produtiva, ela sempre existe, como resultado da vontade dos homens e do peso que geralmente se chama “a força das circunstâncias.” Possivelmente, e numa conjectura pessoal histórica, se não fosse o incêndio dos Paços do Concelho, a BMCCB ficaria, na palavra de Aquilino Ribeiro, na sua “incúria” infinita, irremediavelmente perdida no edifício da Praça 9 de Abril; e depois, com o novo espaço físico inaugurado em 1961, na cave dos Paços do Concelho, outras situações foram aparecendo, como, por exemplo, o fim da leitura domiciliária, a falta de recursos humanos qualificados e a imagem de uma Biblioteca enquanto protótipo ideológico.
Continuando com Pinto da Silva: “A Biblioteca Municipal de V. N. de Famalicão tem, também, a sua história. Não evidentemente que ela seja feliz, consequente ou produtiva. Para nosso mal tem sido o contrário de tudo isso. Mas, como se verá, nem sempre foi assim. Tempo houve, em que um grupo de amigos, e conhecidos, comandados pela vontade superior de Sousa Fernandes, o fundador da Biblioteca, sonharam e começaram alguma coisa de novo.[5]
O final, apesar da “incúria” que foi de décadas, foi feliz, tendo sido necessário que Portugal entrasse em outras andanças que o destino tece, em democracia, para o sonho se tornar uma realidade; e como em quase todos os finais felizes, não havendo nem espaço nem tempo, e ficamos em suspensão, onde o mundo que existe é um mundo sonhado, tal como aquela imagem de Afonso Cruz dos monges bibliofitas e da sua Biblioteca:
… os monges bibliofitas, uma ordem com raízes nas três religiões monoteístas, que haviam construído uma enorme biblioteca, com todos os clássicos do mundo (conhecidos e desconhecidos, perdidos, queimados e aclamados) numa escarpa rochosa, completamente lisa. Os monges viviam, sem nunca pisarem o chão, naquela imensa prateleira que se estendia até às nuvens e deslocavam-se através de um sistema de cestos e roldanas. Dormiam nos varandins das prateleiras, alimentando-se de pássaros que caçavam com a ajuda de armadilhas e do produto de pequenas hortas suspensas. Galib al-Wadi, no entanto, garante que parte da sua subsistência se devia também a dádivas do povo, de pessoas que viviam no solo, mesmo por debaixo das imensas prateleiras onde os monges bibliofitas habitavam. Fílon de Alexandria dizia que a Torá é um ser vivo, e Orígenes era da mesma opinião (de principiis, iv, 2, 4): o sentido literal é o corpo e o sentido oculto é a alma. Os monges bibliofitas, por sua vez, consideravam todos os livros como seres viventes, tal como a própria biblioteca. Os livros têm uma das características fundamentais dos seres vivos: reproduzem-se (como qualquer bibliófilo sabe), com pudor mas sem contenção, quando não estamos a olhar para eles. Precisam de ser alimentandos pela leitura ou acabarão por morrer inanes. Os monges também classificavam os livros por sexos, e a biblioteca era dividida em duas partes: a parte macho e a parte fêmea[6].

Amadeu Gonçalves - Cem (e mais alguns) Anos de Livros, 2013



[1] Umberto Eco – A Biblioteca. 2.ª ed. Trad. Maria Luísa Rodrigues de Freitas. Lisboa: Difel, 1991, pp. 28-29.
[2] Martin Heidegger – Carta Sobre o Humanismo. Trad. Pinharanda Gomes; Pref. António José Brandão. Lisboa: Guimarães Editores, 1987.
[3] Jorge Luís Borges – A Biblioteca de Babel, in “Ficções” [Obras Completas – I]. Trad. José Colaço Barreiros. Lisboa: Círculo de Leitores, 1998, pp. 483-489.
[4] Ray Bradbury – Fahrenheit 451. Trad. Mário Henrique Leiria. Lisboa: Público Comunicação Social, 2003.
[5] Boletim Informativo Biblioteca Municipal de V. N. de Famalicão, n.º 1, Jul. 1984.
[6] Afonso Cruz – Enciclopédia da Estória Universal: recolha de Alexandria. Carnaxide: Editora Objectiva, 2012, pp. 92-93.

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