Numa carta a Oliveira Martins (com a data de 3 de Outubro de 1886), Bernardino Machado distingue aquilo que é a instrução daquilo que é a educação. Para Machado, cito “a instrução é um capital, o único que está em nós indefinidamente”, desenvolvendo “as faculdades produtivas do homem, dota-o com conhecimentos, que são a matéria-prima sobre que operem.” Por seu turno, o que constitui a base da educação é, cito “as verdades morais, que o tempo acrescenta, porque a moral, como toda a ciência, está em perpétua elaboração”, estando assim consciente das mutações éticas. Acrescento à instrução e educação machadiana, aquilo que poderá ser a cultura. Ora, sendo o conjunto de traços distintivos, espirituais, intelectuais e afectivos que caracterizam uma sociedade, efectivamente, a cultura engloba além das artes e das letras, os modos de vida, as tradições e as crenças. Neste sentido, a cultura oferece-nos a capacidade de reflexão sobre nós próprios, na medida em que que nos faz seres humanos mais críticos e eticamente comprometidos. Para além disso, é na cultura que nos exprimimos, nos encontrámos, tomámos consciência de nós mesmos e dos outros, nos reconhecemos como um projecto inacabado, colocando assim em questão as nossas próprias realizações, buscando, ao mesmo tempo, novas significações.
Neste caminho, entre a instrução, a educação e a cultura, a Biblioteca será sempre a instituição, o equipamento cultural por excelência que promoverá essa dimensão mais rica e espontânea do ser humano, enquanto criador, cabendo a ela não só a configuração desse espaço mítico da leitura (enquanto formação humanista, instrutiva e educativa), mas como, ao mesmo tempo, o espaço multicultural de encontros perante os mais diversos suportes de conhecimento. Ao mesmo tempo, a Biblioteca, perante o legado humanista que em si comporta (com o Manifesto da Leitura Pública em Portugal, 1983, e com o Manifesto da Leitura Pública da UNESCO, 1985), enquanto espaço social aberto a TODOS, a Biblioteca surge igualmente como aquele lugar de memória para preservar a identidade cultural da comunidade na qual se encontra inserida, principalmente através do Fundo Local (porque não promover um encontro sobre Fundos Locais da Rede de Leitura Pública em Portugal). Temos, contudo, sinais preocupantes, num momento de tantas incertezas.
Se com D. António da Costa, na criação das Bibliotecas Populares “para todos” as Bibliotecas têm uma relação entre a instrução e a ética, aliando-se a instrução ao desenvolvimento ético; se com a “Bibliotheca Escolar de Villa Nova de Famalicão” de 1908 se encontra relacionada apenas com a instrução; se com Feio Terenas, no seu Projecto-Lei de 1909, se alia as Bibliotecas Populares à instrução enquanto conhecimento, os republicanos de 1911, para além do papel da instrução das Bibliotecas, evocam algo que, nos tempos de hoje tão esquecido tem andado, e que me importa para aqui trazer: as Bibliotecas surgem como espaços lúdicos de entretenimento, de fruição, de distração, de encantamento que será proporcionado pela leitura. Formação humana sim, conhecimento sim, mas a leitura não tem surgido como aquele lugar privilegiado enquanto prazer, de voos para mundos sonhados. Sintomático dos tempos que vivemos, é o mais recente relatório da Direcção-Geral da Educação e da Cultura da Comissão Europeia, no qual temos 85% de portugueses que não frequentaram Biblioteca Públicas durante o ano de 2013 e 60% de portugueses não leram um livro! Terá sido uma ilusão digital?! Também mais recentemente, surgiu uma “Declaração Escrita” no Parlamento Europeu sobre a importância das Bibliotecas Públicas nos países da Europa (ainda se encontrando em subscrição), principalmente ao nível dos serviços que prestam aos cidadãos, nomeadamente com os recursos digitais, permitindo aos mesmos, estando esta situação em primeiro lugar, a busca de trabalho, e encontrando-o, no uso da INTERNET. Uma outra situação da utilidade dos serviços das Bibliotecas Públicas nesta “Declaração” é o da inclusão social. O que é de estranhar é que um Plano para o Desenvolvimento da Leitura não aparece, num papel instrutivo, educativo e de fruição.
As Bibliotecas Públicas têm de surgir como a Casa Pública por excelência das comunidades, para todos os cidadãos, sem censura, não só para uso digital, mas igualmente para a promoção de actividades que evidenciem a dignidade humana, para, nas palavras de Gadamer, numa ampla fusão de horizontes, a cidadania ser plena; e ao falar na censura, tal como aconteceu entre nós no Estado Novo, o mesmo sucedeu aqui, em V. N. de Famalicão. À “incúria”, nas palavras de Aquilino, a que a BMCCB esteve votada, acrescenta-se o controlo da leitura (basta lembrar, por exemplo, o regulamento de 1961, no qual se estipulava que determinadas leituras só seriam autorizadas pelo Presidente da Câmara e pelo Vereador da Cultura), o empréstimo domiciliário teve os seus dias contados em 1961, com o P. Benjamim Salgado, os espólios de Vasco de Carvalho e de Nuno Simões nunca teriam tratamento técnico (andando encaixotados pela Biblioteca e por outras dependências camarárias), para além da falta de recursos técnicos e humanos. Não seria de estranhar que, em 1959, com a vinda da Biblioteca Itinerante n.º 8, e, em 1966, com a 114.ª Biblioteca Fixa da Gulbenkian, a leitura pública em V. N. de Famalicão tivesse um novo folgo, com sucesso. Sem actividades próprias, vindas de associações, caso do C. A. F. (Centro Académico Famalicense), na época da abertura marcelista, promovendo apenas em 1973 o I Concurso de Aproveitamento de Leitura, do qual não sabemos resultados, será em liberdade que a Leitura Pública em V. N. de Famalicão caminhará para a sua dignidade. Se não passou apenas de uma ténue ideia a construção de um edifício de raiz para a BMCCB durante o Estado Novo, tal só se concretizará em 1992, integrando na Rede de Leitura Pública. Com o desenvolvimento e o deslumbramento inicial (passados que estão 40 anos, hoje a Rede está composta por metade dos municípios portugueses), surge uma nova realidade, isso a que chamam de literacia digital. Para além desta literacia digital, importante sublinhar o analfabetismo leitoral (aquilo a que chamam de iliteracia); e ao lado destas duas realidades, as Bibliotecas Públicas, entre o seu papel social e a promoção da leitura (como fruição, entretenimento, encantamento), deverão ter em conta, cada vez mais, numa inter-relação, o papel da instrução, da educação e da cultura. Mas isto é uma visão de um leitor curioso, nas palavras de Henrique Barreto Nunes “um verdadeiro e generoso militante da causa do livro e um apaixonado pela história local”…
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