Prof. Fernando Catroga
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
“Violência e História”
“Hoje há uma abundante produção reflexiva sobre o tema, particularmente da violência, desde o campo da História, no campo da Sociologia, no campo da Antropologia, no campo da Filosofia (e até no campo da Biologia, basta lembrar os estudos de Konrad Lorenz). Isto para dizer que estamos perante uma temática, se nós quisermos ver, há cruzamentos necessários para compreendermos os objectos específicos das investigações, isto é, estamos perante uma questão transdisciplinar. Mas, por outro lado, como acontece nestes domínios das ciências sociais e humanas, há sempre uma dificuldade de conceptualizar, de encontrar uma definição que consiga um amplo consenso, ou, pelo menos, quando há esse consenso, não deixe janelas abertas, para se poder indicar que, afinal, essa definição nunca é totalizadora e abarca sempre lacunas. Claro que as dificuldades ficam mais acrescidas quando se procura relacionar a violência com a política; e, sobretudo, quando se quer uma definição de teor político: se a política se remete, afinal, para a velha definição de Polis, da ideia das sociedades pautadas por normas escritas, ou não, também de carácter jurídico, e que enfatizem os fins que se ultrapassam a simples materialidade da garantia da vida e da regulação da própria vida (como nos diz Ana Harendt, o homem passa a ser político, ou é político essencialmente quando fala, discute, permuta ideias e toma decisões), a dificuldade aumenta ainda muito mais, porque muitas vezes confundimos o político com o político propriamente dito, quando chamamos à discussão as formas mais orgânicas, ou que a um tempo as sociedades se foram realizando. As dificuldades aumentam ainda mais, se nós quisermos ler nos dicionários e ver as definições que nos são dadas sobre a violência, que é o tema que aqui vou propriamente definir. Para Littré, a violência é uma força que pode ser levada contra as leis, ou contra as liberdades públicas, ou como o constrangimento exercido por alguém para coagir ou obrigar esse alguém. Os dicionários portugueses do século XIX e XX, caso do Moraes, referem a ideia de força, grande impulso, força exercida contra o direito, coacção, constrangimento, ou ainda transgredir. Ora, todas estas acepções ligam a violência a qualquer coisa de físico, uma espécie de atentado a um “Eu” corporal, e onde o surgimento das caracterizações são altamente discutíveis no que diz respeito à sua aplicabilidade. De facto, a violência é um discurso ou uma acção agressiva, ou destrutiva, por parte de uma pessoa ou grupo, em relação a outra pessoa ou grupo? Ora, convém dizer que, por um lado, não há uma inteira coincidência entre força e violência. Embora convenha chamar a atenção que se formos à origem da palavra, o “vi” e o “vis, de força, dá violência, como dá violador e dá violação. Portanto, é indiscutível que há uma componente, digamos assim, energética da violência, por um lado, há uma fisicalidade e uma corporeidade inerente ao acto violento, portanto, uma relação de autoridade tensa, mas, por outro lado, é evidente que também há uma auto-violência da autoridade; e nem sempre a violência assume a forma de discurso ou de acção. Também pode ser exercida por omissão, pode ser exercida dobre as pessoas, mas também sobre o património, ou sobre a própria natureza. Por outro lado, a violência, se a levarmos para uma leitura simplificalista, ela pode sugerir que é algo que possui uma visibilidade inerente: ninguém vê, mas ela deixa vestígios suficientes (e depois o direito do monopólio da violência vai desenvolver os seus processos, ou o próprio historiador nas suas investigações vai descobrir), mas há também uma espécie de violência invisível, cujos efeitos foram sendo impossibilitados pela violência física, e há também uma violência simbólica, que pode ser perpetrada em termos físicos (na I República há uma violência iconoclasta, onde a violência directa é sobre os símbolos), e este tipo de violência simbólica pode ter uma expressão de invisibilidade. A análise fica mais complexa, quando nós usamos como conceito mais amplo de política, porque se reduzimos a questão da violência-política àquilo que podemos chamar o Estado, o monopólio da coacção jurídica activa, principalmente no Estado moderno, também podemos não perceber aquilo que, afinal, principalmente através do estudos de Michel Foucault, essa violência tanto pode vir de um macro político, como pode vir expressamente visível, como pode vir de uma experiência micro, não só numa escala político-administrativa, mas também uma violência infringida no próprio corpo; e mais, uma violência de que já não é propriamente violência, no sentido próprio do termo, ela está integrada, faz parte daquilo que podemos chamar o bio-poder, o recalcamento da violência.
Esta é a minha primeira inquietação que gostaria de para aqui trazer e verificarmos que estamos num quadro complexo; e que os historiadores, particularmente, devem ter em conta a complexidade deste quadro. Será útil frisar que toda a violência acaba por ser uma manifestação que remete para a ideia de força. De qualquer modo, já foi sublinhado, que nem toda a força é violenta. Há que não confundir força com violência, porque “a força obriga, enquanto a violência oprime”; ou ainda, “a violência é o grau extremo da força” (Julien Freund). Por isso, o uso da violência tende, nas nossas sociedades secularizadas, a uma sujeição instrumental à racionalidade e, sobretudo, à inferiorização, que caminha à parte, com a institucionalização das formas de revelar a violência de maneira a transformá-la em conflito, e convinha aqui não confundir violência com conflito: nós podemos dizer o que é comum associar-se à violência como uma espécie de algo que remete para a animalidade do homem, o que equivale a dizer é que tem algo a ver com a irracionalidade do que com a racionalidade, tem mais a ver com a insociabilidade do que com a sociabilidade, tem mais a ver com a harmonia social do que com a sociabilidade informal ou formal das sociedades (Durkheim). E quando a mediação passa a ser essencialmente político-jurídico, tem mais a ver com ilegalidade do que com a legalidade. Sim, isto é verdade, mas julgo que precisamos de ir um pouco mais longe. Tanto mais que a violência também pode legitimar-se com argumentos que os seus propagadores e defensores reivindicam com o estatuto da racionalidade, pretendendo conduzir à razão aqueles contidos por estarem ou no obscurantismo ou na menor razão. Isso é muito claro quando a violência é racionalmente integrada como perfil essencial do próprio dinamismo histórico e, portanto, a dicotomia entre racionalidade e irracionalidade também precisa de passar pelo criso da política, sobretudo naqueles que acham que tudo que deve ser racional precisa de ser aloeirado pelas dúvidas metódicas. A violência não pode ser eduzida há acção física, criminalizada, característica típica da fase em que o Estado tem o monopólio, ou procura ter o monopólio da violência, porque significava não levar em conta as dimensões conflituosas em emergência de violentas, que estão para além daquelas, que o próprio Estado de direito prevê, ou aquelas que o próprio Estado de direito repulsivamente pode actuar. Por isso, onde é que há violência? Há violência quando numa situação de inter-acção, a violência no seu dinamismo com um ou vários actores agem de maneira directa ou indirecta, numa acção concentrada ou dispersa, prejudicando um ou vários outros, tendo alvos variáveis na sua interioridade física ou moral, nos seus bens, participações simbólicas e culturais. A violência é, pois, e aqui entro noutro tema, uma orientação social. Diria mais: sem violência não há sociedade, assim como sem suicídio não há normalidade social. É tudo uma questão de grau. A violência é fundante do social, porque é fundante do sagrado. Aliás, como confirmam as grandes cosmogonias que nos chegaram através das narrações míticas (transversal a todas as religiões). Todo o ritual do sacrifício revive, mataforiza, representa a violência fundadora, conseguindo, assim, assegurar a paz no seio do mundo. A violência contra o ritual é a única violência que domestica a violência, que não suscita a obrigação da vingança e que sobre ela podem ser descarregadas as tensões sociais. E, por isso, é que, de facto, estes mecanismo de recalcamento real, que está sempre adormecido nas sociedades, poderemos dizer que nas religiões, e depois no Estado, que no fundo, é o sucedâneo do religioso. São fórmulas que tem mais semelhanças do que há primeira vista possa acentuar. Daí que também se discuta das razões da violência; e quais são elas? Há uma explicação que é mais contemporânea, que tende a não ir aos arcanos desta explicação e que essencialmente tenta explicar a violência como contradições de carácter social. Sem dúvida, é com as sociedades industriais que levaram isso mesmo até às últimas consequências, a secularização dessas sociedades puseram o social e o político como uma espécie de autosuficiência fundante daquilo que é dessas mesmas sociedades. Mas julgo que há algo mais de subterrâneo naquilo que é mais vulcânico nessas sociedades que são mais conflituosas e aí vamos ver, precisamente, a inclusão de todos os níveis de violência e talvez condensadas na socialização de velhos princípios que já vamos encontrar nos seus gérmens, quer nas grandes narrativas míticas, que nas visões do mundo ocidental que tentou explicar a motricidade das sociedades. Esta tese tende, no fundo, por um lado, a valorizar algo que é fundamental, e que julgo vai ser o tema fundamental destes Encontros, a violência política, a violência social, mas também a violência simbólica, sobretudo na violência social, e, para ser coerente, acho que apesar de tudo, essa realidade ganha, se nós recrutarmos um tema que tem de ser encarado, porque não há, não conheço uma sociedade que não tenha sido violenta: criar a ilusão de que se o Estado super-industrializado é violento, é não perceber quais são os seus limites, para, no fundo, desnaturalizar o fundo da violência, ou então qual é a capacidade que têm alguns dos seus prognósticos precisamente optimistas, segundo as quais uma vez que as suas responsabilizações sociais, sejam para que as sociedades não sejam violentas. isto é, saber se, afinal, estamos perante uma utopia, ou se há utopias realistas, no que diz respeito àquilo que, também se pode inferir, levando em conta, o “fundo pulsional” (Freud), o conflito entre o construir e o destruir, entre a natureza e a cultura, assim se consegue resolver naquela idealizada e esperançosa paz perpétua que Kant sonhou. Por causa disto, por todos aqueles que acham que sim, que esta explicação sociológica deve ser levada em conta, mas ela não pode escamotear, por um lado, o fundo natural que existe no homem (o homem continua a ser um animal), há sempre um fundo violento no ser humano na sua relação com o outro que, sem se cair na apologia do lobo do homem contra o homem, que uma certa teoria do contrato social da modernidade pretende proferir, e mesmo que seja para defender a ideia (como acontece mesmo no próprio Freud), segundo a qual, a animalidade de que o homem é, pode de facto trazer acréscimo de civilização, não para definitivamente anular essa besta que está em cada homem, mas precisamente para esse esforço permanente do homem vencer a natureza. Estamos aqui perante uma tese que não dá uma origem exclusivamente sociológica ou histórica à violência, mas que, ela, só por si, não vai cair numa visão pessimista. De qualquer modom confesso que não devemos confundir violência com o conflito, e vejamos Georg Simmel: “O conflito e a agressão desempenharam um papel positivo contribuíram para a construção do social.” Um sociedade sem conflito é impensável. E, portanto, a questão da violência é uma questão de grau (de quê?) do conflito. Esta é uma questão que se pretende quer com as sociedades abertas, quer com as sociedades fechadas, ou com as utopias irrealizadas, ou as chamadas utopias concretizadas. Em suma, já o velho Heraclito dizia que a guerra é a origem de todas as coisas. Diz isto, porque estava a passar para uma linguagem filosófica, estava a racionalizar uma longa tradição que vinha do pensamento mítico. E se formos agora analisar a estrutura fundamental dos grandes mitos, o que é que nós encontramos? Os grandes mitos serão sempres cosmogonias; e o que é que nesses grandes mitos (na Índia, na China, na tradição grega, pagã) encontramos é uma História (e agora vamos entrar na História) da génese do mundo, não digo na criação do mundo, como os filósofos dizem, o processamento do mundo, onde geralmente esta génese é uma narrativa que tem personagens antitéticas, onde geralmente uns representam o princípio do bem e o princípio do mal, o princípio da luz e o princípio das trevas, o princípio da forma e o princípio da disforma. No princípio era o caos é, em última análise, o ponto de partida, dessas grandes narrativas, que dá origem ao cosmos, que significa ordem, e é nesse cosmos que emerge o homem. Numa coabitação com as divindades. Outra ideia fundamental para a ideia de História, que é a imediata degradação trazida pelo tempo, isto é, a luta gera o mundo, mas o tempo corrompe. E, portanto, a teoria das idades nestas cosmogonias, os critérios de classificação foi feito pela qualidade dos metais (no Cristianismo a Idade do Ouro corresponde ao paraíso), mas inevitável e inexorável e necessariamente vai ser degradada até chegar à idade dos Homens, propriamente dita, que é a idade da penúria, que leva a que haja um conjunto de práticas rituais para anular o tempo e que para, nem que seja, para usufruirmos esse poder pleno da nostalgia que se tem das origens. Aqui, duas ideias: primeiro, é a luta, é do combate que nasce o tempo; em segundo lugar, o tempo corrompe. Não podemos dizer que o pensamento grego e romano tenha alterado substancialmente esta questão. É sabido, que a visão judaico-cristã vem trazer algo diferente. Ao lado da ideia da criação, Deus criou igualmente o espaço e o tempo, que passaram a ser finitos e passaram a os homens a ter expectativas, da espera, da esperança, da escatologia, ou da verdadeira salvação. E porque é que a História, na visão judaico-cristã. Continua a ser sofrimento? A História começa com o pecado de Adão e a luta entre Abel e Caim. Cá temos a luta que é uma espécie de peregrinação no tempo, no tempo finito, e a salvação possibilitada +ela audição da boa-nova trazida por Cristo. Também aqui não deixamos de ter a ideia de luta, a ideia de violência, senão o parricídio é pelo menos a luta entre irmãos, a ideia de sofrimento e a ideia de salvação, que já não é meramente ritual, ou a aparência de que o ciclo possa regressar ao ponto de partida. É uma visão escatológica. No Humanismo, cada vez mais a História vai ser entendida como um progresso, o crescente questionar da narrativa, mas num tempo finito, e a modernidade vai infinitizar o tempo e o espaço e vai substantivizar o homem, porque o homem passa a ser ele o motor da História, o demiurgo da própria História, o iluminismo vai consagrar isso mesmo. Mas a verdade é que, para explicar este dinamismo crescentemente distinguido das teses providencialistas de qualquer motor exterior à própria História, mas sendo inerente à própria História. A ideia da motricidade histórica, que vai ser típica da modernidade, e que vai ter na ideia da violência histórica, ou da guerra, ou da luta, a sua grande metáfora explicativa, essa ideia vai ser de facto inscrita nas grandes narrativas agora autossuficientes e secularizadas e crentes durante os atributos agora quase divinizados do ser humano, particularmente na capacidade perfectiva do homem, na ideia do progresso indefinido, ou infinito, na ideia de que o homem racionalmente pode compreender a razão da História e pode através da sua razão transformar a História, que vem acentuar a ideia da práxis, da acção, e que vai criar a figura do revolucionário, o qual só podia nascer do conceito da revolução. E o novo conceito de revolução só podia surgir num quadro de progresso indefinido e, simultaneamente, porque se não podia levar a um fatalismo, na crença de que, mesmo quando se acentua que a História tenha as suas tendências objectivas, através do conhecimento o homem pode acelerar a História e lutar para que o futuro chegue mais cedo. Ora, as revoluções modernas vão ser isso mesmo; e nos seus principais momentos, vai por no motor da História a contradição, a luta e como momento parturiante da História a ideia de sofrimento e a ideia de violência."
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