Então
pode ser uma lembrança do Tiago Veiga?, assim foi como Artur Sá da Costa se
dirigiu a Mário Cláudio, este afirmando, Isso já não será possível, já está no
cemitério! E praticamente logo de seguida, Bigotte Chorão, Será que posso
cumprimentar Tiago Veiga? E um abraço afectuoso lá saiu. Se para além deste
recorte social posso salientar, este acontecimento notável, que ficará para a
história, só no segundo dia, no primeiro dia do “Colóquio Amor de Perdição: olhares
cruzados”, o que sucedeu foi uma sucessão de intervenções institucionais, já
aqui relatadas neste blog, salvando-se, para além desse cariz, a inclusão de
Camilo no Plano Nacional de Leitura e em várias actividades institucionais
pedagógicas e a sua inclusão na estrutura curricular do secundário, a
intervenção de Vasco Graça Moura, em cuja comunicação realizou pistas para uma
interpretação sobre o “Amor de Perdição” e a “Sereia”, relacionando ambas as
ficções de Camilo, naquilo que as aproxima e as distancia. De realçar,
igualmente não só a exposição “Amor de Perdição: olhares cruzados”, como
igualmente a abertura da “Sala de Leitura”. Uma nova viagem poderá ser começada
por novos leitores!
Por seu turno, o segundo dia foi salvo por
Bigotte Chorão, Pacheco Pereira, João Lopes e por Mário Cláudio, ao lado de intervenções numa
perspectiva hermenêutica biográfica, estética (isto é, as capas das edições
luso-brasileiras e algumas estrangeiras, numa viagem pelo cinema do “Amor de
Perdição”) e bibliográfica. Para já, fica aqui o registo da comunicação de
Mário Cláudio (a de Pacheco Pereira e a de Bigotte Chorão a seu tempo virão) e
algumas fotografias do momento, momentos únicos e inesquecíveis possivelmente
irrepetíveis, só na memória, destes encontros sempre saudáveis entre os nossos
criadores, da cultura e da língua portuguesa. Em “Tiago Veiga”, uma viagem
ficional entre Camilo e Bernardino Machado, entre tantos outros, Mário Cláudio
lá colocou a lembrança do dia, Não é com “o”, Não, com “u”, Amadeu com “u”,
romance que até podia ter levado, o de “Amadeo”, não o meu! Aqui está,
portanto, a conferência de Mário Cláudio, entre a tradição familiar e a receção
de “Amor de Perdição” na família, como nasceu o seu interesse pela obra de
Camilo, passando pelas suas ideias
sobre
Simão Botelho, “o canalha”, “o sapo que Camilo transforma em príncipe”.
A deciatória de Mário Cláudio no meu exemplar de "Tiago Veiga"
MÁRIO CLÁUDIO
"Simão Botelho: a dimensão ficcional de um herói"
Gostaria de começar por fazer uma espécie de
quadro cronológico de afectos, que passam também pela tradição familiar,
relativamente à recepão do romance “Amor de Perdição”; e isto é também de
alguma forma, o desenho de uma mapa de sentimentos, tipo reacções de leitura,
que poderá ter algum interesse para duas disciplinas, infelizmente pouco
praticadas em Portugal, e que continuam a estar condenadas pelas academias, e
que são a sociologia da literatura e a sociologia da leitura. Sei que não tem
havido trabalhos nessas cadeiras, nessas disciplinas literárias, e isso
ressentido não apenas na visão histórica da nossa literatura, como
inclusivamente na aprendizagem indispensável para quem pretende continuar com a
tradição de escrita, neste caso uma tradição ficcional em que Camilo ficaria,
muito grato, com certeza e enriquecido com os contributos que fossem dados por
esses estudos, que infelizmente ainda estão distantes
Mário Cládio, a escrever a lembrança no "santuário camiliano", nas palavras de Bigotte Chorão, no livro "Tiago Veiga"
Camilo,
como sabemos, morre em 1890 e três anos depois a minha avó materna. A minha avó
era uma menina muito bonita, casou muito cedo, ela nunca me disse, mas disse-mo
a minha mãe muitas vezes, que a minha avó tinha lido o “Amor de Perdição” ainda
solteira e que teve uma crise de melancolia, que nós hoje chamaríamos uma
depressão, caindo numa espécie de apatia, uma letargia estranha que não se
compreendia e que tinha a sua origem na leitura do romance de “Amor de Perdição”.
Devo
dizer que o meu contacto com Camilo e com a sua obra foi pelo visionamento do
filme de António Lopes Ribeiro e em 1943 não terá sido fácil a uma criança
perceber fosse o que fosse daquela história. Só começou a despertar no dia em
que descobri uma dessas inúmeras edições, na biblioteca camiliana, na
biblioteca do meu pai. Quando li o romance, devia ter talvez doze, treze anos,
pareceu.me alguma coisa completamente tola, isto para dizer o que senti na
altura. Mas pouco tempo depois, quando fui para o Liceu, e então sim, era
obrigatório estudar o “Amor de Perdição” e pareceu-me nessa altura muito mais
interessante: não tanto por aquilo que representava a construção novelística ou
pela, digamos, edificação ficcional do imaginário, mas por uma espécie de
libertismo que por ali entrava e que necessariamente atraía muito mais a um
adolescente de 16 anos que era nessa altura. Só muito mais tarde é que me
debrucei, quando começava o meu trabalho de escritor, sobre o “Amor de Perdição”
e aí foi de facto um “Amor de Perdição”. A partir daí comecei a perceber a
grandeza do livro, que para mim estava naquilo que era extremamente inovador na
literatura portuguesa e que estava sobretudo na mecânica da construção
ficcional, na utilização e no manuseamento dos tempos e ainda a capacidade de
dizer muito em muito pouco espaço, sendo um romance verdadeiramente romance no
osso, ao contrário daquilo a que estava habituado a ler, e que eram ficções
muito mais luxuriantes, muito mais transbordantes do que aquela história tão
simples do “Amor de Perdição” e que era dado por Camilo por uma enorme paixão e
que era insuperável. O filme de Manuel de Oliveira veio, de alguma forma,
corroborar essa minha paixão.
Artur Sá da Costa e Tiago Veiga, digo, Mário Cláudio
O
título desta conversa, pretensioso, é: “Simão Botelho: a dimensão ficcional de
um herói”; e a pergunta que tenho de fazer necessariamente, logo no início, é
esta: que em foi Simão António Botelho? E a resposta está no “Dicionário de
Camilo Castelo Branco”, de Alexandre Cabral. [Mário Cláudio lê metade do
verbete]. Uma figura exemplar! Este é o
Simão Botelho; e onde está a Teresa? Aqui não aparece. Não se sabe se ela
existe, se existiu alguma vez, que tipo de mulher é que seria. Mas é nesta
figura que Camilo pega para a transformar num herói romântico e creio que
estaria em Camilo, na sua memória de grande leitor que era, a figura de “Werther”.
A meu ver, Camilo quis criar um “Werther” à portuguesa, mas não o conseguiu.
Não é exactamente pelas figuras, que é uma galeria interminável, que Camilo
cria é [reconhecido], mas sim pela arquitectura dos seus romances, pela ironia,
pelo sarcasmo e por outras características clássicas super-referidas na obra
camiliana. Não creio que as figuras de Camilo, de uma forma global, há algumas
excepções, sejam figuras que ultrapassem a dimensão do cartão recortado, do
boneco de cartão recortado. São muitas, mas a cada estereotipo corresponde ,
precisamente, a isso, à natureza do estereotipo: os brasileiros são todos
broncos, feios e têm joanetes; as heroínas ou são mulheres fatais, ou meninas
puríssimas e angelicais, como a Teresa, e os heróis são valdinos, e as outras
são personagens que se repetem ostensivamente de romance para romance, sem ter
a ver com algo que lhes assiste.
O abraço para a história, Mário Cláudio e Bigotte Chorão
A
propósito desta comemoração, a revista “Colóquio-Letras” convidou três
escritores portugueses para escreverem um conto sobre a figura de Simão
Botelho: [eu próprio], Lídia Jorge e Hélia Correia. No caso de Hélia Correia,
vê a figura de Simão Botelho exactamente como eu a vi no romance “Camilo Broca”:
no fundo, um traste, um indivíduo que era um traste do ponto de vista ético,
deontológico e amoroso, um tipo inqualificável e que Camilo embelezou da forma
que conhecemos. Pegou também na figura feminina (não na Teresa, que fica assim
arrumada a um canto na sua eterna virgindade, que é dúbia, no romance não
sabemos se ela a perdeu ou não – temos a certeza que Julieta a perdeu, Romeu
tocou-a pela janela! – mas em relação à Teresa não temos, não sabemos, mas é
deduzível que a não tenha perdido), mas na figura da Mariana. A Mariana acaba
no conto de Hélia Correia por chegar à Índia com Simão, que continua a sua vida
de malfeitoria, aliás documentada, de viver à custa de certas mulheres,
sobretudo ricas, nem sempre dotadas de grande beleza, pouco festejadas pelas
graças naturais, mas, enfim, aquecidas de património, que para Simão era
extremamente sedutor. O que acontece com Mariana, no conto de Hélia Correia, é
uma figura serôda, uma terra muito próxima
de Goa, e talvez pelos maus princípios e pela turbulência de Simão,
transforma-se, nada mais nada menos, numa patroa de um bordel. O texto que
escrevi chama-se “O Canalha” e o canalha é Simão Botelho. É uma história de
proveito e de exemplo, não só para vermos a fibra que tecem os vários
malhadinhas a partir da literatura portuguesa, como também se tece o escritor
Camilo Castelo Branco, que consegue transformar um sapo num príncipe.
[Mário
Cláudio leu o seu conto].
Uma perspectiva da mesa no auditório do Centro de Estudos Camilianos, com Mário Cláudio, Vereador da Cultura da Câmara Municipal de V. N. de Famalicão (Paulo Cunha) e José Manuel de Oliveira
Se
não vale mais do que isto, valerá pelo menos para demonstrar alguma coisa do
fenómeno como é que os ficcionistas convivem. É que muitas vezes as figuras
reais são muito mais espessas do que as figuras do que nós ficcionámos; e
quando pretendemos transformá-las em alguma coisa que não se contenha naquilo
que elas eram, produzimos o tal boneco de cartão que à pouco referi. Mas também
é verdade que não é por aí que se mede o talento ou o génio de um autor como
Camilo Castelo Branco. Em relação às figuras isoladas, se não consegue muitas
vezes dar-lhe alguma profundidade, a dimensão da ficção, ele dá, ao fim e ao
cabo, uma perspectiva insuperável daquilo que é a condição humana.
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