Para a Dr.ª Manuela Barreto Nunes
O
painel de azulejos de Fernando Lanhas, o sol com os seus raios solares, à
entrada da Biblioteca Municipal Camilo Castelo Branco (doravante BMCCB),
leva-me ao texto mítico de Umberto Eco “A Biblioteca”, quando aqui nos fala do
livre-acesso à leitura, na ideia da Biblioteca como uma aventura. Cito:
Ora,
o que é que há de importante no problema do acesso às estantes? É que um dos
mal-entendidos que dominam a noção de biblioteca é o facto de se pensar que se
vai à biblioteca pedir um livro cujo título se conhece. Na verdade, acontece
muitas vezes ir-se à biblioteca porque se quer um livro cujo título se conhece,
mas a principal função da biblioteca é de descobrir livros de cuja existência
não se suspeitava e que, todavia, se revelam extremamente importante para nós.
É certo que essa descoberta pode ter lugar desfolhando o catálogo, mas não há
nada mais revelador e apaixonante do que explorar as estantes que reúnem
possivelmente todos os livros sobre um determinado tema – coisa que,
entretanto, não se poderia descobrir no catálogo por autores – e encontrar ao
lado do livro, que não se tenha ido procurar, um outro livro, mas que se revela
fundamental[1].
O
livre-acesso, assim estipulado por Eco, representa, efectivamente, o painel de
azulejos de Lanhas: a Biblioteca como um ponto do universo, melhor, o círculo
do universo não fechado mas aberto, ou na imagem de Jorge Luís Borges, um ponto
do universo que se desdobra num horizonte de esperança e de fraternidade, numa
diversidade única e irrepetível, eis os raios solares. Nesta perspectiva, quando
Borges nos diz em “A Biblioteca de Babel” que a Biblioteca é um modelo do
universo é porque, efectivamente, este paradigma, a do saber na sua
plurabilidade humanista, representa e tipifica o humano, naquilo que tem de
melhor e do pior. Nada mais. Eco, aqui, equivocou-se, pretendendo transformar o
infinito dos hexágonos borgianos à medida do homem: a Biblioteca, enquanto
universo, na imagem borgiana, é já o protótipo do humano, à sua imagem e
semelhança. Desta forma, o que o painel de azulejos de Lanhas nos representa e
nos diz é que a Biblioteca nos aparece como o sol, enquanto círculo do universo
e de luz, o círculo da luz, e, por outro lado, na linguagem de Heidegger da
“Carta Sobre o Humanismo”[2], a
Biblioteca surge-nos, para ainda percebermos melhor a ideia de Lanhas, como uma
“clareira do ser” e só esta “clareira do ser” é «mundo»; e se a Biblioteca
surge como a representatividade da linguagem humana, a Biblioteca é a “casa do
ser”, que se ramifica e se projecta no mais variado dos caminhos, os raios
solares.
Citando
novamente Heidegger, o “mundo é a clareira do ser na qual o homem penetrou a
partir da condição do ser-projectado de sua essência”; e se somos ser-sendo em
projecção inquietante, e sempre em busca de respostas, a Biblioteca, como sol,
enquanto casa do ser no mundo como universo, é já o mundo, o mundo do ser que
será aquilo que é o mesmo em nós, oferecendo respostas pelos raios solares, que
são os livros que transportam a linguagem entre a ficção e a realidade. Por
isso, a Biblioteca é o pior e o melhor do humano.
O
que Eco não referiu foi algumas perspectivas borgianas, ou alguns axiomas: a
Biblioteca existe abeterno e a
natureza informe e crítica de quase todos os livros, por muito diferentes que
sejam, contêm elementos iguais. Dos exageros e dos absurdos, Borges enumera-os como
de superstições: quando se proclamou que a Biblioteca abrangia todos os livros,
a primeira impressão foi a de uma “extravagância felicidade”; depois, a certeza
de que, em alguma prateleira de algum hexágono, continha a Biblioteca livros
preciosos e de que tais livros preciosos eram inacessíveis, essa era uma ideia
intolerável. Uma outra superstição diz respeito a que alguns bibliotecários, suponho,
acreditavam que a prioridade era encontrar as obras inúteis, esquecendo-se que
cada exemplar é único e insubstituível (talvez para serem eliminados). Uma
outra superstição diz respeito à ideia do “Homem Livro”, isto é, em alguma
estante deve existir um livro que seja a chave e o resumo perfeito de todos os
outros, abdicando-se assim a humanidade ao discurso da pluralidade crítica[3].
Por
experiência própria, diga-se, já em plena democracia, numa ou noutra
Biblioteca, apareciam-me ainda nos catálogos algumas fichas que no canto
superior direito tinham a notação “reservados”; por outro lado, em plena época
do Estado Novo, com a sua censura e o traço azul, no regulamento da BMCCB, de
1961, podemos ler que determinados livros só poderiam ser lidos com autorização
escrita do Presidente da Câmara e do Vereador da Cultura. Outros tempos em que
a ideologia suplantava o acesso à leitura e à informação, lembrando-me, por
exemplo, do livro de Ray Bradbury “Fahreneit 451”[4],
cuja sociedade queimava os livros para a sua protecção, projectando-se aqui os
fascismos europeus (e outros ismos
afins).
Tudo
isto para dizer que só assim, na dimensão do humano, com todas as suas
paradoxalidades, na pretensa busca da fraternidade humana (talvez seja este o
elo de ligação ao painel de escultura de madeira de Paulo Neves) se pode
compreender o painel de azulejos de Lanhas: a Biblioteca que surge como um sol
que se ramifica com os seus raios e os livros que se ramificam em leitura, para
descobrir o mundo em nós; e para este sol que se ramifica em clareira de raios
de esperança, esse círculo sempre aberto, há uma história.
Conforme
nos diz António Joaquim Pinto da Silva: “Qualquer instituição tem a sua
história. Mais ou menos feliz, mais ou menos consequente e produtiva, ela
sempre existe, como resultado da vontade dos homens e do peso que geralmente se
chama “a força das circunstâncias.” Possivelmente, e numa conjectura pessoal
histórica, se não fosse o incêndio dos Paços do Concelho, a BMCCB ficaria, na
palavra de Aquilino Ribeiro, na sua “incúria” infinita, irremediavelmente
perdida no edifício da Praça 9 de Abril; e depois, com o novo espaço físico
inaugurado em 1961, na cave dos Paços do Concelho, outras situações foram
aparecendo, como, por exemplo, o fim da leitura domiciliária, a falta de recursos
humanos qualificados e a imagem de uma Biblioteca enquanto protótipo
ideológico.
Continuando
com Pinto da Silva: “A Biblioteca Municipal de V. N. de Famalicão tem, também,
a sua história. Não evidentemente que ela seja feliz, consequente ou produtiva.
Para nosso mal tem sido o contrário de tudo isso. Mas, como se verá, nem sempre
foi assim. Tempo houve, em que um grupo de amigos, e conhecidos, comandados
pela vontade superior de Sousa Fernandes, o fundador da Biblioteca, sonharam e
começaram alguma coisa de novo.[5]”
O
final, apesar da “incúria” que foi de décadas, foi feliz, tendo sido necessário
que Portugal entrasse em outras andanças que o destino tece, em democracia,
para o sonho se tornar uma realidade; e como em quase todos os finais felizes,
não havendo nem espaço nem tempo, e ficamos em suspensão, onde o mundo que
existe é um mundo sonhado, tal como aquela imagem de Afonso Cruz dos monges
bibliofitas e da sua Biblioteca:
… os
monges bibliofitas, uma ordem com raízes nas três religiões monoteístas, que
haviam construído uma enorme biblioteca, com todos os clássicos do mundo
(conhecidos e desconhecidos, perdidos, queimados e aclamados) numa escarpa
rochosa, completamente lisa. Os monges viviam, sem nunca pisarem o chão,
naquela imensa prateleira que se estendia até às nuvens e deslocavam-se através
de um sistema de cestos e roldanas. Dormiam nos varandins das prateleiras,
alimentando-se de pássaros que caçavam com a ajuda de armadilhas e do produto
de pequenas hortas suspensas. Galib al-Wadi, no entanto, garante que parte da
sua subsistência se devia também a dádivas do povo, de pessoas que viviam no
solo, mesmo por debaixo das imensas prateleiras onde os monges bibliofitas
habitavam. Fílon de Alexandria dizia que a Torá é um ser vivo, e Orígenes era
da mesma opinião (de principiis, iv,
2, 4): o sentido literal é o corpo e o sentido oculto é a alma. Os monges
bibliofitas, por sua vez, consideravam todos os livros como seres viventes, tal
como a própria biblioteca. Os livros têm uma das características fundamentais
dos seres vivos: reproduzem-se (como qualquer bibliófilo sabe), com pudor mas
sem contenção, quando não estamos a olhar para eles. Precisam de ser
alimentandos pela leitura ou acabarão por morrer inanes. Os monges também
classificavam os livros por sexos, e a biblioteca era dividida em duas partes:
a parte macho e a parte fêmea[6].
Amadeu Gonçalves - Cem (e mais alguns) Anos de Livros, 2013
[1] Umberto Eco – A Biblioteca. 2.ª ed. Trad. Maria Luísa
Rodrigues de Freitas. Lisboa: Difel, 1991, pp. 28-29.
[2] Martin Heidegger
– Carta Sobre o Humanismo. Trad.
Pinharanda Gomes; Pref. António José Brandão. Lisboa: Guimarães Editores, 1987.
[3] Jorge Luís Borges – A Biblioteca de Babel, in “Ficções”
[Obras Completas – I]. Trad. José Colaço Barreiros. Lisboa: Círculo de
Leitores, 1998, pp. 483-489.
[4] Ray Bradbury – Fahrenheit 451. Trad. Mário Henrique
Leiria. Lisboa: Público Comunicação Social, 2003.
[6] Afonso Cruz – Enciclopédia da Estória Universal: recolha
de Alexandria. Carnaxide: Editora Objectiva, 2012, pp. 92-93.
Sem comentários:
Enviar um comentário