Imagem do livro de José Viale Moutinho "Camilo Castelo Branco: memórias fotobiográficas (1825-1890), representando a Igreja do Salvador, em Ribeira de Pena, onde casaram Camilo Castelo Branco e Joaquina Pereira de França.
UMA
AVENTURA CAMILIANA ENTRE A FILOSOFIA E A LITERATURA
Por
Amadeu Gonçalves
Ao
saudoso Mestre e Amigo Dr. Manuel Simões
“…
uma cousa chamada «filosofia?, ciência que foi necessário inventar-se, à medida
que umas certas virtudes de portas adentro deram em saltar pelas janelas; e
voar por aí fora, não sei para onde..." (Camilo, “Amor de Salvação”)
“O
romancista é como o estatuário: este, na escultura de um busto decente e
modesto de mulher, não se entusiasma copiando os lugares-comuns da natureza. Eu
imito o primeiro e o segundo.” (Camilo, “Anátema”)
“A
filosofia é mais circunspecta nas suas respostas. O escalpelo do romancista vai
mais dentro, e afasta fibra a fibra as camadas de tecidos exteriores de que as
turbas se impressionam para os seus juízos sempre errados, empíricos, ou
estúpidos.” (Camilo, “Anátema”)
“Não
escrevo novelas, nem tragédias, mas gosto de imaginá-las…” (Camilo, “Livro
Negro do Padre Dinis: continuação dos Mistérios de Lisboa – II”)
Camilo
alquimista? Porventura alquimista da singularidade humana, das essências
humanas na sua ontologia existencial e histórica, na configuração linguística.
Mais do que um idealista romântico-realista perante o conhecimento da
interioridade do humano, Camilo materializa o sensível do mundo e do ser na
corporeidade das palavras entre uma mesmidade e uma alteridade do mundo em nós,
entre a imaginação e esse auto desdobramento ficcional para o dizer das coisas
deste mundo. Possivelmente, quatro grandes tópicos poderão ser abordados nessa
viagem entre a Filosofia e a Literatura, em obra ficcional tão profícua: uma
fenomenologia do amor (na tipificação mítica de Pigmalião), uma dimensão
antropológica (a problemática da felicidade) e uma dimensão teológica (a
questão da secularização) e uma dimensão histórica. O que se pretende é
resgatar mundos para uma maior compreensão da riqueza textual camiliana. Tal como
Camilo nos diz em “As Três Irmãs”: “Falaremos ainda muito, e depois, na
eternidade.” A aventura é interminável, impossível, mas possível, e convém
abrir novos caminhos interpretativos, no papel ético da Literatura, tal como
Camilo o defendia. Neste sentido, evoco aqui Jacinto do Prado Coelho, entre
duas viagens programáticas: a primeira, quando, no ano já ido de 1946, no
prefácio à 1.ª edição da sua mais do que “Introdução ao Estudo da Novela
Camiliana”, afirma que “falta, por exemplo, esta coisa fundamental: estudar a
novela de Camilo em si mesma (filosofia da vida, personagens, estrutura,
processos), dentro do género «novela» e dum ponto de vista histórico-evolutivo,
quer dizer, sem perder de vista a cronologia, ou seja, procurando ver como nasce
e cresce e se transforma a novela camiliana.” A segunda, colocando em questão,
senão mesmo a impossibilidade de um “inventário de temas” para se procurar a
explicação da obra. A crítica de Prado Coelho reflecte aqueles que se
preocuparam mais com uma hermenêutica biográfica (salvo, acrescento, algumas
excepções). Mas o sentido da “filosofia da vida” na textualidade camiliana esse
é o sentido que poucos ainda se aventuraram a explorar, numa viagem entre a
Filosofia e a Literatura. Foi, precisamente, Prado Coelho que me inspirou, aqui
há uns anos, nessa aventura camiliana, nessa busca de um mundo no qual a ficção
camiliana se transfigura. Contudo, sabemos, e Camilo sabia-o bem, tal como
Harold Bloom também o sabia: a literatura não é unicamente linguagem. Camilo
aproxima-se da metáfora de Nietzsche naquilo que poderá ser a Literatura, como
vontade de figuração, isto é, o desejo de ser diferente, o desejo de estar
noutro lugar. Não só para suplantar aqueles dois mundos que Eduardo Lourenço
soube bem redefinir, o da nossa portugalidade na mutação de meados de
oitocentos, entre uma monarquia absoluta que não tinha fim e um liberalismo
propenso às invectivas camilianas, mas também como salvação. Melhor, outros
exemplos poderia edificar, nas palavras do tio de Ladislau de “O Bem e o Mal”: “Nos
livros aprendi a fugir ao mal sem o experimentar.” Mas, a essência do humano em
termos filosóficos, e transportada para a ficção, podemos encontrá-la na
crítica que Camilo efectua a Espinosa, a propósito da tradução anotada que
realiza ao livro “Jesus Christo perante o Seculo ou novos testemunhos das
sciencias em abono do Catholicismo”, de Roselly de Lorgues. Um dos únicos,
senão mesmo um dos únicos estudos desta relação entre Camilo e Espinosa,
devemo-lo ao jesuíta Mário Martins, evidenciando que afinal de contas o então
seminarista portuense não desperdiçou assim tanto o seu tempo. Na realidade,
nas dez anotações que Camilo então realizou, com aproximações aos mitos escatológicos
cristãos, elas poderão ter as seguintes indicações titulares, a saber, i) o
materialismo espinosista; ii) imortalidade da alma; iii) corrupção e
imoralidade; iv) cosmogonia; v) geologia e dilúvio; vi) naturalismo; vii) do
materialismo astrónomo; viii) profecias; ix) analogia, o que terá em análise as
últimas consequências do ateísmo. Ateísmo, diga-se, de passagem, que será uma
sequência do indiferentismo religioso que Camilo fala na introdução no livro em
causa. Surge-nos aqui, na contextualização ficcional camiliana, um tema
profícuo: a secularização. Assim sendo, não deixa de ter razão Bigotte Chorão
quando nos diz que “houve até quem defendesse que em obra tão quantiosa e
temperamental não se encontra uma só ideia – apenas paixões. Opinião mais do
que discutível – errada. Decerto que Camilo não é o que se chama um «escritor
de ideias, mas seria excessivo considerá-lo desprovido delas, como se as
milhares de páginas que escreveu lhe dessem só o estatuto de contador de histórias,
onde não houvesse senão amores, e rancores, e humores.” Consciente do tempo em
que escreve, tal como nos diz em “Lágrimas Abençoadas”, Camilo explora na sua
textualidade várias temáticas. A já falada, a secularização, poderíamos
inculcá-la no tema mais geral da Filosofia aqui incorporando igualmente o
materialismo de oitocentos na sua relação com as personagens, uma hermenêutica
da cultura na sua relação historiográfica (miguelismo, liberais e realistas,
sebastianismo, Maria da Fonte, invasões francesas, liberalismo, etc.), a
Literatura (entre a intertextualidade e uma meta-literatura) e a sua dimensão
ética. Paralelamente, a questão antropológica ou a dimensão teológica no seu diálgo
com o racionalismo e o tema genérico a que chamo de uma Fenomenologia do Amor,
entre os mitos gregos e cristãos, em busca da felicidade, entre uma ética das
virtudes e de expiação. Se existe filosofia na ficção camiliana, nas palavras
de Fialho de Almeida, será nesta “falta de fé na felicidade: neste conceito que
pôs no seu espírito um tão amargo travor das coisas da existência.” Contudo,
Camilo contradiz-se muitas vezes nos seus próprios conceitos, refugiando-se nas
personagens enquanto alter-egos. Estas são apenas algumas ideias temáticas para
um “Dicionário Camiliano Temático”. Dou o exemplo, como outros poderia dar,
desta configuração temática camiliana para uma interioridade textual e, ao
mesmo tempo, desconfiguração textual, o caso de “Onde Está a Felicidade”.
Estamos perante uma ficção em que a dimensão da Literatura e particularmente a
dimensão de uma Fenomenologia do Amor estão bem patente. Veja-se uma vítima do
romance, Guilherme de Amaral, relacionando-o Camilo com o mito de Pigmalião, ou
a personagem feminina Augusta, relacionando-a com o mito da queda cristão. Enfim,
esta trasladação temática entre a Filosofia e a Literatura pode ter os seus
riscos, mas não custa nada tentá-la. Camilo merece.
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