À ESQUINA DO MESQUITA[1]
Do outro lado desta esquina, Nihil fez desfilar perante nós a figura simpática do «Toca», com o seu violão, o seu varino, a sua filosofia e a sua honestidade.
Que bem que me lembro dele e que bem que Nihil o pintou!
Mas há uma passagem que me faz um pouco de confusão. É quando nos diz – que tinha a sua barbearia ao fundo da Rua de Santo António e afirma que era barbeiro dos nobres…
É que se a memória me não atraiçoa, quem tinha a barbearia quase ao fundo da Rua de Santo António, por baixo da casa onde primeiro morou o chauffeur Carvalho e fazia a barba ao barão de Joane, ao Cristina de Cabeçudos, ao Dr. Moreira Pinto, ao Meneses do Vinhal e ao Visconde de Pindela era o Braguinha, que era também o barbeiro do professor e solicitador António Dias Costa, do João Constantino e do Correia Júnior.
Não se recordam do António Braga?
Era pai daquele rapaz muito pálido que em Quarta-Feira de trevas, silencioso e grave, cadenciados os passos e metido na sua opa roxa, percorria as ruas da vila agitando a pesada matraca que enchia a moçaria de medo e de respeito!
E passada a Quarta-Feira de Trevas, lá o víamos outra vez na Quinta-Feira de Endoenças!
Mas não o confundamos com o filho do machado barbeiro que, meia dúzia de metros abaixo, tinha o seu estabelecimento no rés-do-chão do prédio do solicitador Lino Guimarães e que veio a suceder, no uso das matracas, ao filho do Braga, de cuja alcunha, um pouco esquisita, todos se recordarão certamente…
Olhar vítreo, andar de sonâmbulo, só a sua figura infundia medo quando ao entardecer fazia matraquear aquele instrumento pesado – uma tábua com grossas argolas de ferro! – chamando as almas aos Templos para ali viverem a tragédia do Gólgota!
Pelo menos quem fazia a barba ao barão de Joane e se deslocava a Rorigo três vezes por semana era o Braguinha, pois algumas vezes lhe fomos abrir o portão e o guardamos, criançola de oito anos, das sanhas do Dragão e do Belagre, dois corpulentos cães S. Bernardo – que o terceiro, o Sultão, era já velhinho e inofensivo… que no pomar-jardim guardavam o velho solar e o grande aviário bem povoado das mais exóticas espécies!
Aqueles dois enormes cães nunca gostaram do Braga nem do Cristino que sempre que tocavam à campainha aguardavam a escolta do Jerónimo, da Josefa, ou da Balbina.
Eram para mim dois lindos… cavalos de estimação, tantas vezes os montei sob a vigilância paternal do Barão de Joane, que ria perdidamente!
E tinham também simpatia pela Teresa tola que sempre que tinha fone subia a Rorigo e ali conservava semanas a fio para depois desertar e só voltar a aparecer quando as roupas estavam reduzidas a tiras e a fome e apertava de novo!
Por isso lhe chamavam a Teresa do Barão!
Cuidava dos cavalos, auxiliando o Sr. João, seu velho e bonacheirão tratador e cocheiro; cuidava no quinteiro dos perus, dos patos, dos galináceos de todas as espécies, e de entre estes, imponentes faisões, galinhas da Índia e pavões, e falava com todos os bichos que a conheciam à distância e fazia tudo quanto queria do Dragão e do Belagre!
Lembro-me que quando o «Sultão» morreu – o Sultão era um enorme alão, todo branco – o Sr. Barão recolheu-se e não saiu ao jardim durante uns dias…
O Barão de Joane, quando Provedor do nosso Hospital, que visitava todos os dias, mas sempre a horas diferentes, sofreu grandes desgostos!
Bondoso em extremo, afligia-se quando a falta de camas e de meios não permitia o internamento de um doente, pois naquele tempo o Hospital era como uma ante-câmara da morte, para onde só iam moribundos!...
E dizia-se: «está muito malzinho… até já foi para o Hospital»…
E ele queria que fosse uma casa de cura e, portanto, de vivos!
Com os preparativos para a República, o barão de Joane preocupava-se com o «mano» – nunca o ouvi referir-se de outro modo ao Dr. Bernardino Luís Machado Guimarães! – e dizia para a Balbina e para a sua afilhada Josefa: «Não sei em que aventuras se anda a meter o «mano»…
Finamente educado, esperto e diplomata, António Machado Guimarães convivia afabilissimamente com regeneradores, progressistas e franquistas, sem que nenhum dos respectivos influentes lograsse atraí-lo para a sua órbita!
Nem eles, os políticos da terra, nem o Professor da Universidade seu «mano», por quem tinha, de resto, a mais profunda admiração!
Mas esta alusão ao Barão de Joane sugere-me a invocação da insinuante e veneranda figura do «mano», que ficará para a próxima semana.
a seu tempo se falará destas crónicas, de josé casimiro da silva, o qual, com a "esquina do mesquita" e a "esquina do caetano", descreveu, através dos seus alter-egos condeixa e lourenço e dos pseudónimos nihill e ego sum, uma memória e mentalidade social e cultural de vila nova de famalicão dos tempos da I república.
[1] Ego Sum – “À Esquina do Mesquita”. In Estrela da Manhã. V. N. de Famalicão, Ano 2, n.º 104 (1 Abr. 1962), pp. 1-2.
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